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Cores
Patrizia Barrera


Patrizia Barrera

CORES, as vozes da alma
Prefazione dell'Autrice
Escrevi o livro sem pensar nisto, mas literalmente escutando as vozes que saiam do meu profundo, daquele algo impalpável e absorvido que defini a minha alma. São vozes, reflexões e historias fora do tempo, nascidas num lugar remoto que é a fantasia mas que chegam a partir do meu vivido e das experiencias psiquicas que colhi ao longo do percurso. Cada conto é marcado por uma cor e por uma imagem, para vos oferecer uma experiência planetária e arquetípica. São contos intuitivos, pouco lógicos, quase surrealistas.
Lê-los é abrir uma janela sobre um mundo espiritual colectivo, que está em cada um de nós.
Espero que possam oferecer-vos um instante de evasão e de reflexão com o seu coro de recordações das cores pungentes, património incomparável da nossa existência.
PATRIZIA BARRERA

COPYRIGHT
Copyright PATRIZIA BARRERA 2020
ALL RIGHT RESERVED


RHA PRODUCTION

ÁGUA


Sou a água que gorgoleja nas vales,
que toca levemente o prado com as suas humidas mãos
e sou a água que cai intensamente do céu,
que suavemente amontoa-se na escura cavidade das árvores.
Água das pontas nevosas,
água áspera e escura que chove seca nas flores.
Onde quer que seja
E quem quer que seja
Serei sempre água.
As gotas amargas, as pingas incandescentes
Nascidas
Do teu amor para mim.

CORES
Azul


Foi naquele verão que me tornei sua mulher. Lembro-me ainda das maçãs que se debruçaram nos campos como soldados em festa, e o largo caminho que nos separava do bosque.
Ali havia a nossa casa, e foi ali que aconteceu.
Eu era jovem e perdida naquele alarido de vozes, no turbilhão de cores que precedem o pôr-do-sol: mas cheirava a noite como uma amiga e desejava que viesse, que a minha cama nupcial ainda imaculada se vestisse de rosa e me acolhesse num ninho, como acontece com a águia depenada.
Trazia o seu rosto esculpido nos olhos: a testa alta, o olhar severo, os túrgidos lábios. E depois as mãos. Aquelas mãos incansáveis e curiosas que sabiam aprisionar o mundo numa teia, coagia o dia para aparecer a noite, transformava a velhice em juventude.
Sabiam chorar, tais mãos.
A minha vida e as suas mãos: para mim aquilo era todo universo.
Assim continuou durante um ano, largos dias marcados pelos meus passeios no bosque e os seus quadros, os meus olhares à torrente e as suas cores.
A natureza permanecia confinada ali, prisioneira. Aquela era a cerejeira morta no inverno que continuava a viver, e aqueles fogos da noite quando na colina se dançava. E os desejos ocultos, as emoções sofridas, tudo confundia-se no momento em que o pincel se expandia para descobrir ou para esconder.
Às vezes avançava para pintar durante horas. Depois, como se desconfiasse, reparava-se em volta e me via, e só desta forma sabia que tinha chegado a noite.
Ele agarrava-me e nos amávamos. No meu corpo as suas mãos ainda desenhavam e nele não havia paixões. Apenas fantasmas, apenas cores.
Eu não percebia. Todavia era lindo o seu mágico interesse nos meus cabelos, no meu seio.
Reparava-me, e no fundo eu era a sua mulher. Falava para mim da sua alma confusa, dos sentimentos reprimidos que voltavam a angustiá-lo toda a noite, dos projectos para os novos quadros. Falando adormecia, como se estivesse profundamente cansado. Nao sei porquê mas nao queria que dormisse. Parecia-me de estar a mergulhar na obscuridade e não estar a ver o fim. Eram os seus quadros a fazer-me companhia e, quando o percebi, resolvi que não devia perdê-los. Jurei para mim mesma e por fim obtive; agora eu sou a própria cor.
Às vezes acontecia que partisse para expor os seus quadros e céus ficava sozinha; então vagueava ansiosa não sabendo o que fazer, nos meus interminaveis dias. Escrevia para a minha mãe, ou ia ao lago, ou dormia, e deixava toda coisa sem nada terminar, contagiado pela angustia. Reparava as paredes vazias, as telas despojadas, os pinceis sobre o fogão da sala, abandonados, sem ninguém que lhos desse vida. Era como se todo o mundo desaparecesse aos meus olhos, do universo sonhado não restavam que migalhas. Tinha sido roubado tudo, os seus quadros vendidos a desconhecidos que não sabiam que comprando-os compravam também a minha alma. Sentia-me pilhada e traída, tinha visto nascer um filho e não pudera tê-lo.
Depois ele voltava, juntamente com a sua magia. Daquelas mãos nascia uma rosa, um raio de sol ou mesmo a escuridão. Do nada apareciam anjos de rosto puro e inocente ou crianças infelizes no ventre das mulheres, arruinadas; e corpos murchados, taças cheias, cenas de loucura, de satisfação, de amor. Reparando aqueles rostos dava-me conta de tê-los já visto dentro de mim e, tocando aquelas telas, esperava que tudo voltasse em mim. O medo de perdê-los de novo assaltava-me, amorfa e feroz: que sentido tinha criar e não desfrutar daquela vida?
Perscrutava enquanto inventava novas cores e em mim nascia um inconsolável desespero. Impontente diante dele pensava que se nada pode-se conservar muito melhor é destruir.
Lentamente rastejou no meu coração uma insidiosa serpente, e o criador que até agora tinha acreditado de admirar transformou-se num tirano incensivel aos sentimentos de piedade que inspirava as minhas criaturas. Encolhia-me nos seus abraços não acreditava em mais nada dele, mergulhando naquela amarga solidão que acolhe as alamas mortas. Ele reparava-me como se não me visse, e agora sei que sofria; talvez era possuido por uma escolha, popr aquela dúvida horrível que logo depois acabou comigo. Agora compreendo que se atormentava sem saber escolher entre a mulher e as suas cores.
Chegou um novo verão sem que nada tivesse mudado, mas um dia ele não pintou e alcançou-me no bosque: parecia prostrado por algo a que não sabia opor-se, e profundamente cansado. Readquiriu uma ternura e nos amamos como nunca tinhamos feito antes, deixando a parte os complexos e as inibições, felizes de ser simplesmente nós próprios. No fim ele pareceu aliviado, como se tivesse finalmente percebido o que devia fazer. Regressamos e ele pegou de novo as cores, mas desta vez tinha um novo argumento: eu. Durante horas quieto a observar as suas ágeis mãos sobre a tela, velozes e habilidosas entre os pinceis como se não tivesse outro nutrimento que este. O dia apagou-se e estava ainda curvado no quadro: a mulher retratada ria, eternamente feliz na sua eterna juventude. Perscrutando-a não era mais eu. Atrás dela uma porta entreaberta dava-me sinal para entrar, e eu questionei-me o que podia haver atrás dela como grande segredo que não podia vê-lo. De novo aquela miserável tristeza possuiu-me e eu não pude evitá-la; e a partir da tristeza tornou-se definhamento, e depois loucura. Eu próprio teria perdido ainda, sem mais poder encontrar-me? E quem me teria comprado desta vez? A minha alma estava no quadro e eu podia defendê-la dos olhares dos outros. Ele levantou-se e beijou-me demoradamente: sabia talvés que teria partido?
Aquela noite não consegui dormir. Os meus sonhos eram estranhos chamamentos de mundos perdidos no tempo. Depois percebi que era a porta pintada a chamar-me. Corri para o jardim e o quadro tinha-se movimentado. A porta já aberta mostrava um preto abismo de sombras e, no fundo, as cores. Com um salto fui para dentro e não pude mais sair: como a natureza prisioneira permanecera escolpida na tela, e estava morta.
A partir daquele dia ele não pintou e nem vendeu outros quadros, porque não sabe onde refugiou-se a minha alma: e desde então as árvores são cinzentas e os rostos dos anjos desaparecidos como fumo. Não sabe reconhecer a luz da noite, e não pode distinguir o fogo da água. E eu não posso mais dizer-lho, enfim, porque estou atrás da porta, onde ele não conseguirá por acaso ver-me. Agora choro eu, sentindo-me desgraçada na minha humana fraqueza.
Tudo acabou. E não tenho mais voz para confessar-lhe que lhas roubei eu, as suas cores...

A MUSICA DO DIABO
Vermelho


Dizia-se que aquela musica tivesse sido o diabo a compô-la.
Boatos, palhaçadas, superstições? Mas ele a tinha tocada mais vezes, aquela música, e não viu por acaso o diabo.
E certamente estava presente como se existisse, com aqueles chifres aguçados, o ar altivo e o chapeuzinho preto, como normalmente aparece, e então faz medo visto que sentes a sua ardente respiração nas costas. Mas uma vez que ele não tinha medo, ou melhor, aquela música parecia elevá-lo para cima onde o diabo, como se diz, não devia existir. E todas as vezes lhe chegava no coração uma paz profunda, que nenhuma coisa terrestre está em condições de dar.
Era aquele amor para o universo que lhe palpitava no peito, quando tocava, a encorajá-lo para continuar a fazê-lo; aquela estranha satisfação dos sentimentos. E então sentia-se bem, ou melhor ansioso para fazer o bem, embora no fundo a bondade o enfadava como o mal, e todas as vezes acabava por dobrar-se sobre si e daqueles sentimentos nao fazia nada.
Desta forma todos os dias: satisfeito de si mesmo e depois descontente, desejoso em concentrar-se sobre aquelas notas e cansado delas. E depois havia aquela estranha nausea para a gente e para si, depois de ter tocado, que não percebia mas que não podia prescindir de desejar. No fim habituou-se também a isto e não deu mais importância, considerando esta coisa como uma pequena consequência por sofrer para desfrutar uma dádiva preciosa.
“O diabo? Não existe!” – dizia, invocando como prova a sua mesma felicidade.
“Nunca roubei, nem feito mal a ninguém, e sou feliz. O diabo portanto não arrasta mais à perdição os mortais que gozam da sua companhia e das suas artes? Então, se é assim, bem-vindo demónio!”
E acariciava o queixo da sua jovem mulher grávida e pesada, sinal de que a criança era sã e crescia bem, mas um sinal da bênção divina. Mas a mulher morreu na primavera dando luz tal filho. Contudo e não é tão-pouco certo, visto que a criança permaneceu fechada no ventre da mãe morta até que uma desconcertante lamentação não impôs a ninguém de trazê-la para fora com uma cesariana improvisada. Tinha os olhos abertos e estava viva. E então todos pensaram que havia algo de maléfico nesta coisa, e que os prognósticos eram negativos. E quando enfim se descobriu que aquela estranha criatura não falava, podendo muito embora, e que se limitava a reparar o mundo com os olhos destacados e furiosos, pois todos deixaram-nos sozinhos, e o pai e a filha viveram na solidão todos os anos da sua vida.
No fim desapareceram, como se tivessem sido engolidos por nada, e todos disseram que tinha sido o demónio a pedir a compensação das suas almas. Mas eu sei como foi, visto que fui o único a decidir de misturar-me à sua desgraça, movido por um sentimento de piedade por aquela pobre criatura que crescia no nada, e a quem eu mesmo não podia que levar um pouco de comida. O que aconteceu assusta-me ainda, mas já sou velho e não me deu de temer nada se não a morte. Assim, meus amigos, oiçam as minhas pobres conversas e depois esqueçam-nas. De palavras já existe tantas.
Ele, portanto, continuava a tocar aquela musica, e afundando dia após dia no esquecimento. Tocando-a encontrava paz, iludindo-se de não ser mais o mesmo e fugindo para longe daquela realidade sem esperança… nenhuma coisa o interessava, salvo aquela musica: e quando compreendeu que não podia mais prescindir, mesmo odiando-a, começou a odiar a si mesmo porque a odiava. Não conseguia mais fazer nada: muito menos reparar aquela filha que derretia como uma vela, mesmo sendo sã, e que não proferia nenhuma palavra.
“Maldita musica!” – praguejava para si mesmo. E cada dia se prometia de novo de não tocá-la mais, sabendo bem que não teria hesitado um instante depois pegando de novo na mão os instrumentos para fazê-lo. E todas as vezes que aquelas notas subiam ao céu num mágico encanto no seu corpo desenhavam-se as sombras de esgotamento, aquela mancha escura que todos os dias ganhava mais forma e tornava-se pura, até quando explodiu com o seu medonho aspecto e ele não pôde mais não vê-la. Aquela pata pelosa que lhe tinha surgido no peito era o sinal do diabo, aquele demónio que não tinha por acaso temido e que não temia ainda mas cheio de horrores e de ilusões. Não havia fuga possível: aquela música era o acto de sangue que lhe tinha sugado enfim a alma e que o tinha concedido como uma dádiva ao obscuro senhor. Ele o tinha enfim tocado e o mantinha no punho, nutrindo-se da sua soberba e da falta de fé.
E a contaminação passava de homem para homem através das notas daquela música que solicita os sentimentos para o pecado que não se pode cometer mas que, no íntimo, mesmo por isto já cometeste. Uma peste silenciosa que cada criatura leva para uma outra, repetindo-se o ciclo até ao infinito. Então ele questionou-se quantos massacres tinha cometido, trazendo ao mundo aquela música. Quantas outras manchas esperavam para explodir, quantos pecados circulavam pelo ar à espera de serem colhidos. Tinha sido cego mas agora via e compreendeu que aquela musica precisava destrui-la de imediato, visto que havia ainda uma possibilidade de salvação que impedisse aos homens de seguir o seu próprio caminho dependia apenas dele. Levantou os braços para pegar a partitura… mas não pôde.
Aquela música ainda lhe dizia algo e o encantava, jogando uma fácil partida contra a vontade do homem vencido. Compreendeu num instante que não queria absolutamente destrui-la, mas pelo contrário tocá-la, uma vez que não há tentação mais forte para o ser humano do que aquele de arrastar à perdição o próprio irmão.
“Deves queimá-la” – sussurrou naquele momento uma vez às suas costas.
Era aquela filha muda que agora falava, e estava firme à frente dele, pálida e que sofre no rosto e toda a tremer.
“Deves queimá-la” – repetiu, destapando um seio. Também ali a mancha tinha ganhado forma.
Aquela pata que se tinha colocado no peito dela a tinha enfim tudo escavado e devorado, perfurando também o coração.
“Veja como estou reduzida. Deves queimar aquela música, e deves queimar a mim também.”
Então ele percebeu que não havia mais esperança nem tempo: amontoaram as poucas coisas que tinham na margem do mar e fizeram uma grande fogueira. Depois ele atirou-se ali sobre o corpo da sua filha e por fim aquela música. E esperou silenciosamente que o fogo se apagasse totalmente, reparando os últimos fragmentos da sua vida a desaparecer com ele.
E, quando tudo foi efectuado, sentiu-se velho e cansado: não porque tivesse perdido a sua única filha, mas porque não podia mais tocar a sua música.
E quando este pensamento ficou claro e nítido na sua mente a mancha no peito começou a queimar-lhe e a sufocá-lo numa mordaça, de maneira que o seu corpo ficasse consumido e a carne devorada.
Assim regressou ao seu quarto e matou-se.

LOUCURAS
Cor de laranja


Vi-a e levei logo um golpe. Algo nela atraia-me e me repelia ao mesmo tempo, algo infinitamente doce e secretamente triste sobre uma boca da mulher e um sorriso de criança, quase que se estivessem reunidos nela uma mágica inocência e uma lânguida perversão. Mais a reparava mais me convencia que albergasse nela uma dupla natureza e, daí, uma dupla beleza. E efectivamente linda me parecia, duma elegância rara, como duma tímida roseira crescida entre os abrolhos selvagens. Foi assim, instintivamente, que a segui: caminhava suavemente sem virar-se, rápida e segura como longas pernas de pantera. Mas bastava reparar durante um instante o seu perfil puro para encontrar ali a incerteza infantil que me tinha encantado e que agora mais que nunca parecia tocar mal no seu corpo perfeito. Como num sonho ainda revejo os seus morenos cabelos deixados soltos nos ombros que pareciam estar a tremer, o nariz pequenino e arrebitado, a ruga amarga e macia da sua boca. Enquanto a seguia imaginava até o som áspero da sua voz, que devia ser subtil como as suas ancas e harmoniosas como o tenro delinear-se das suas coxas. E me parecia conhecê-la desde sempre no momento em que me questionava o que estaria a fazer ali, sozinho naquela longa rua, perseguindo unicamente um aroma de mulher.
Estes pensamentos acompanhavam o longo caminho que parecia não ter fim.
Mas nada tinha fim naquele dia: nem o palrar submetido dos passarinhos, ou o calor das áridas colinas e muito menos o suor que pingava implacável e lento da minha testa. Mas continuava para frente, impelido pelo único ardente desejo que finalmente ela virasse e durante um único instante dirigisse para mim o seu olhar. De repente, quase importunada pelo barulho dos meus passos, ela virou: colhi um olhar sanguinário e aguçadas feições de fuinha. Cruel e sanguinária, pois! Mas o seu lábio tremeu de medo e eu experimentei outra vez a coragem de quem se sente o mais forte. Reparei-lhe eu também, demoradamente, desejoso e atrevido, derramando outra vez nos meus olhos os pensamentos proibidos durante muito tempo adormecidos. Mas não avancei um passo, possuído pelo inconsciente receio que aquela fosse uma visão dum instante, uma miragem perseguida por uma vida que por uma única imprudência pudesse desfalecer. Sentia de ter uma extrema necessidade de afundar nela, de sentir o calor da sua pele e a doçura da sua boca. Tive a vontade de feri-la, de apertar aquelas ancas leves e dissolvê-las entre os dedos, e colocar os meus dedos nos seus seios e depois arrancar-lhos, para pisar e destruir algo bastante precioso e frágil para não ficar furioso e dar cabo o meu coração.
Ela estava ali, firme, e não fugia. E por acaso por que deveria? Desconhecidos um ao outro e fixos num único pensamento, ninguém de nós os dois moveu-se, e ficamos a repararmo-nos como alunos irrequietos à espera do som duma campainha que não chegava por ventura. No fim moveu-se e eu continuei atrás dela. Era talvez cúmplice dum misterioso subentendido escondido nos seus olhos. Desorientado e perdido segui o ligeiro ritmo dos seus batimentos, o prazer que transpirava da sua pele e a obscura voluptuosidade dos seus sentidos.
Retomamos desta forma aquele eterno vagar entre campos e colinas, e o céu parecia o mar, e todo cheiro prometia tempestade.
Acompanhava-me um presságio de morte que de repente me assolou a alma e não pareceu mais a abandonar-me. E eu, que nunca tinha amado o calor do meu corpo, adverti-o com macabra veemência, quase como se estivesse despertado por vingança do longo esquecimento a que eu mesmo o tinha condenado. Eu, que nunca tinha amado uma mulher, agora abaixaria para pedir, atirar-me-ia impulsivamente de joelhos em frente daquelas amáveis ancas implorando uma hora de piedosas e amáveis carícias. Mas era pois eu aquele homem que tivera medo de amor, e por isso tinha-se confinado para sempre nas certezas dum destino irrevogável, num trabalho uniformizado, negando para si próprio o calor da lareira doméstica por pura covardia? Eram meus, todos aqueles pesados anos nos ombros em que tinha esquecido de ter sido criança, e por isso abominava ao pensamento dum toque na testa e do sorriso de pequeno amante dum recém-nascido? O que tinha feito da minha pobre vida se não um fato bastante apertado onde por pouco encontrava lugar sozinho?
Sepultado por estes pensamentos dei-me conta que tínhamos chegado nas proximidades duma casa, e que a mulher estava enfim perdida. Reparou-me e eu permaneci fora, numa inútil espera dum convite que não chegou por acaso. Parado na sua porta não sucedeu nada naquele dia, e nem sequer naqueles sucessivos, e eu fiquei em pé a respirar o poeirento ar dos campos até quando o sol ficou incandescente, e a poeira queimou-me os pés e um impetuoso vento obrigou-me a voltar aos meus passos.
A partir daquele dia vivi o terror de mim mesmo, toquei com a mão a inutilidade da minha vida vazia e constatei com amargura o desmoronamento das minhas ilusões. De repente deu-me uma repulsa a minha pele leve de velho. E percebi finalmente de não ter por acaso amado, de ter escolhido com feroz teimosia e percorrer sozinho esta passagem na terra, absorvido em dar valor àquilo que valor não tem, se não aquele imaginário e inconsciente da vaidade dos homens.
Seguindo um dia aquela mulher fui durante uma hora eu mesmo: agora voltei à minha vida, à rua em declive que me levará ao seu possível fim.
Sei que nunca serei feliz; mas talvez conseguirei convencer-me de não ter falhado para repreender-me e péssimas escolhas por renegar. Estenderei um véu na minha alma como fazem todos e percorrerei a linha de demarcação do tempo justificando cada minuto o meu mau acto. O esquecimento é tudo aquilo que desejo.
Mas agora sei caminhar no vazio, sem esperança e sem amor.

MÃE
Branco



.
Não é verdade, mãe, o que me dizia da vida: que todos os dia s são iguais e que vagamente o sol ilumina um mundo ofuscado pelo ódio. Se da minha parte é lícito a recordação posso dizer-te que já desde então amava o que não me foi dado, e que amargamente desejava aquela existência que tu me negaste.
Desde o primeiro instante onde percebi que ali estava, ainda perdido na eternidade do meu infinito, tão confuso no limite inviolável entre a vida e a morte, senti o peso dos teus remorsos sobrecarregar-me nos ombros e uma vez sem som repelir-me distante do mundo. Tinha apenas nascido e uma faísca de repúdio acendeu-se no meu coração e me queimou. Então uma dor densa e indomável escavou-me dentro uma angústia sem lágrimas, enquanto no meu coração já acariciava-me a ideia de ser teu filho.
Não sabia não agradar-te, ainda que com terror reparavas a tua imagem no espelho, ou que tremias ao único som da palavra “mamã”. Não percebia o por quê da minha existência se tu não me amavas, e não me dirigias por acaso uma palavra amiga. Sei apenas que esperava e sofria, e adormecia chorando entre os horríveis fantasmas do meu temido destino. Envolvido numa ténue neblina não conhecia as injustiças e as humilhações do teu mundo, todavia o teu choro já era notável para mim e nele, como uma doce canção de embalar, encontrava o meu repouso. Tinha aprendido a reconhecer a tua voz, e a partir da escuridão consumia as minhas forças na tentativa de entender-te e de encontrar um ponto firme no meu incerto universo.
A tua parte exterior, o teu doce corpo, os ruídos alcançavam-me submissas. Mas era o batimento do teu coração que gostava de ouvir, tão misterioso e absorvido, e do seu único som nutria-me à espera que todo o meu corpo se formasse. E enquanto o sangue começava a escorrer-me as veias e meus olhos fechavam-se, esperando de abrir-se de novo diante de ti mais tarde, empregava a eternidade do meu tempo a imaginar o teu rosto e a fantasiar sobre a vida que teria tido, questionando-me se teria sido boa ou não. Era tão doce dormir sobre o teu seio e perceber a partir do teu ventre o bom aroma das flores, e escutar pingar intensamente a chuva nos vidros, e ver as horas passar embora estavas sempre triste e as tuas únicas palavras falavam-me de morte. O que sabia da vida? Nada. Todavia a amava e não desejava que entrar ali, e medir-me como homem nas minhas acções diante a presença de Deus.
Mas tu agrediste-me com os teus discursos: que mesmo uma galinha come os seus ovos, que todos os animais matam os filhos que não podem nutrir. Que o peixe grande come o peixe pequeno e que não há espaço para as ovelhas num mundo de lobos. Que uma criança é criança só quando é nascido e que antes não existe nada.
Nada? Mas então eu o que era? Eu existia. E sabia da existência desde o primeiro instante, desde quando uma força indescritível me arruinou da minha letargia, e dividiu a minha primeira célula, e ordenou ao meu coração “Palpita!” aquela mesma força que impede aos planetas de chocar-se, que impõe ao mar de permanecer confinado no seu berço, no verão de fazer crescer o grão e dirige enfim o curso dos rios. Aquela força que separou a mundo do caos e forçou todo o universo a nascer.
Mãe, acreditas realmente que seja o querer do homem a mover o criado? Eu sei pelo contrário que tudo o que existe neste mundo é regido pelo Amor, e que só no seu nome no céu brilham as estrelas.
Então tu falaste para mim das guerras que devastam a mundo, de fome e das pestes, e de todos aqueles males pelos quais não há mais remédio. Todavia, mãe, todo homem é um sopro de ar puro, um ponto interrogativo nas inumeráveis probabilidades do criado. E aqueles pintainhos que a galinha devora não são germes da próxima vida que se reencarnará um dia? E eu, se tivesse sido nascido, não poderia amar-te? Depois mais nada. A partir daquele dia não me dirigiste mais a palavra. Esperaste assustado o meu inevitável fim, uma palavra incompreensível para algo que nunca teve um começo.
No fim ouvi uns passos à minha volta e vozes duras e ameaçadoras que me advertiam do meu inelutável destino. Tu adormeceste no momento em que as mãos invisíveis me arrancavam do teu ventre e instrumentos afiados cortavam-me as carnes. Tentaste resistir mas no fim cedeste àquela dor e me deixaste sair.

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