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A Garota Dos Arco-Íris Proibidos
Rosette Rosette
O encontro de duas solidões no contexto fascinante de uma vila escocesa imaginária é o ponto de partida de uma grande história de amor onde nada é como sempre. A protagonista - Melisande Bruno - é a garota dos arco-íris proibidos, capaz de ver só em preto e branco. E o seu antagonista, como também grande amor, é Sebastian McLaine, escritor relegado a uma cadeira de rodas.










Primeiro capítulo






Levantei o rosto, oferecendo-o ao vendo plácido. Aquela brisa leve me pareceu de bom auspício, quase uma amiga, um sinal que a minha vida estava a mudar de rota e, desta vez, com sucesso.
Apertei com mais força a mão direita na mala e retomei o caminho com confiança renovada.
O meu destino não estava longe, a julgar pelas indicações tranquilizantes do condutor do autocarro e esperei que tivessem sido sinceras e não só otimistas.
Ao chegar no pico da colina, fiquei imóvel, em parte para retomar o fôlego, em parte porque não acreditava nos meus olhos.
Uma casa modesta? Assim a tinha definido a senhora McMillian ao telefone, com a brancura típica das pessoas acostumadas a viver em áreas rurais.
É claro que estava a brincar. Não podia estar a falar seriamente, não podia ser tão ingénua sobre o resto do mundo.
A casa se erguia majestosa e real como um palácio de fadas. Se a escolha daquela posição era motivada pelo desejo de a mimetizar entre a vegetação espessa e exuberante em volta, bem... a tentativa tinha falhado pobremente.
De modo imprevisto, senti um sentimento de sujeição e reconsiderei o entusiasmo com o qual tinha enfrentado a viagem de Londres à Escócia e de Edimburgo àquela pitoresca, isolada, tranquila vila das Highlands. Aquela oferta de trabalho me tinha caído em cima como um bumerangue, um maná do céu num momento sombrio e sem esperanças. Eu tinha me conformado em passar de um escritório ao outro, mais anónimo e decadente que o anterior, como um trabalhador faz-de-tudo, destinada a viver de ilusões. Depois, a leitura casual de um anúncio e o telefonema que havia desencadeado aquela mudança radical de residência, uma mudança brusca mas fortemente desejada. Até a poucos minutos antes, parecia mágica... O que tinha mudado, afinal?
Suspirei e obriguei os meus pés a se moverem novamente. Desta vez, o meu andar não era triunfal como poucos minutos antes, e sim mais desajeitado e hesitante. A verdadeira Melisande voltava à tona, mais forte que o peso com o qual tinha tentado em vão afogá-la.



Percorri o resto do caminho com lentidão e eu estava bastante satisfeita de estar sozinha, de modo que ninguém pudesse adivinhar o verdadeiro motivo da minha hesitação. A minha timidez, manto protetivo com vida autónoma apesar das minhas repetidas, falidas tentativas de tirá-la de mim, tinha voltado ao centro das atenções, lembrando-me de quem eu era.
Come se eu pudesse esquecer.
Cheguei ao portão de ferro, com ao menos três metros de altura e aqui tive uma nova hesitação paralisante. Mordi meu lábio, considerando as alternativas que eu tinha à disposição. Bem poucas, na verdade.
Voltar atrás estava fora de questão. Eu tinha antecipado as despesas para a viagem e o dinheiro que me sobrava era muito pouco.
Pouquíssimo, na verdade.
E depois, o que me esperava em Londres? Nada. O vazio absoluto. Até a minha companheira de quarto lutava para se lembrar do meu nome e, no melhor dos casos, o estropiava.
O silêncio em volta de mim era absoluto, a ressoar na sua total imobilidade, quebrado só pelas batidas surdas do meu coração.
Pousei a minha mala no caminho, sem me preocupar com as possíveis manchas da grama. Tanto que, para mim, não significavam nada. Estava banida num universo em branco e preto, sem qualquer indício de cor.
E não no sentido metafórico.
Levei uma mão à têmpora direita e exerci uma leve pressão com os polegares. Tinha lido em algum lugar que servia para aliviar a tensão e mesmo se achava isso estúpido e totalmente inútil, efetuei obediente a um ritual em que não tinha nenhuma crença, mas só respeito a um costume consolidado. Era agradavelmente confortante ter hábitos. Tinha descoberto que isso contribuía a me acalmar e nunca me destacava em nenhum deles. Bem, não naquele momento.
Tinha girado violentamente numa direção oposta àquela costumeira, fazendo-me arrastar pela corrente e agora teria feito documentos falsos para voltar atrás.
Desejava o meu quarto em Londres, pequeno como a cabine de um navio, o sorriso distraído da minha colega de quarto, as provocações do seu gato barrigudo e até as paredes descascadas.
De repente, sem prévio aviso, a minha mão voltou a segurar a mala de couro e a outra se soltou no portão ao qual tinha me segurado sem perceber. Não sei o que estava por fazer – se escondida ou tocar a campainha – mas nunca tive como o descobrir, porque naquele exato momento ocorreram duas coisas ao mesmo tempo.
Levantei o olhar, atraído por um movimento além de uma janela do primeiro andar e tive a visão de uma pequena tenda branca deixada cair no seu lugar. E depois ouvi a voz de mulher. A mesma ouvida poucos dias antes ao telefone. A voz de Millicent Mc Millian, espantosamente próxima.
“Senhorita Bruno! É a senhorita, não?”
Virei na direção da voz, esquecendo o movimento na janela do primeiro andar.
Uma mulher de meia idade, ossuda, magra e de ar suave, estava continuando a falar, como um rio repleto. Fiquei envolvida.
“Mas é claro que é ela! Quem mais podia ser? Não recebemos muitas visitas aqui em Mildnight Rose House, e depois estávamos esperando por ela! Fez uma boa viagem, senhorita? Encontrou a casa facilmente? Está com fome? Sede? Deseja descansar, imagino... Chamo logo Kyle para levar a bagagem ao seu quarto... Eu escolhi um quarto bonito, simples mas delicioso, no primeiro andar...”
Tentei, com escassos resultados em responder ao menos a uma das suas perguntas, mas a senhora Mc Millian não interrompeu o seu fluxo ininterrupto.
“Claro ficará no primeiro andar, como o senhor Mc Laine... Oh Deus, ele não precisa de assistência de sua parte. Já tem Kyle a servir como enfermeira... Ele é na realidade um trabalhador braçal... É também condutor... De quem não se sabe, dado que o senhor Mc Laine nunca sai... Ah, estou contente que a senhora está cá! Sentia mesmo a falta de uma companhia feminina... Esta casa é um pouco lúgubre. Dentro ao menos... Aqui, ao sol, parece tudo maravilhoso... Não acha? Gosta da cor? É atrevida, eu sei... Porém o senhor Mc Laine gosta”.
Vejam só, pensei com amargura. Uma pergunta à qual estava feliz por não ter que responder.
Segui a mulher dentro do pátio e depois pelo enorme saguão da casa. Não parou um instante de tagalerar, em tom tintinante, como o som de um sino. Limitei-me a concordar aqui e ali, lançando algum rápido olhar aos ambientes pelos quais passávamos.
A casa era realmente enorme, constatei surpresa. Esperava uma decoração mais sóbria, espartana, máscula, ao considerar que o proprietário, o meu recém empregador, era um homem que vivia sozinho. Evidentemente, os seus gostos eram tudo menos minimalistas. Os móveis eram suntuosos, deslumbrantes, antigos. Século XVIII pensei, mesmo sem ser uma especialista de antiguidades.
Apressei o passo para não perder a governanta, rápida como um gueopardo.
“A casa é imensa” resmunguei, aproveitando uma pausa em seu longo monólogo.
Ela me lançou um olhar por cima do ombro. “E é, senhorita Bruno. Porém, metade está fechada. Nós usamos só o piso térreo e o primeiro andar. É excessivamente grande só para um homem e cansativa para a subscrita se ocupar. Além das grandes limpezas para as quais é contratada uma empresa de limpeza externa, aqui sou só eu. E Kyle, naturalmente, que tem bem outras tarefas. E a senhora, agora”.
Finalmente, parou em frente a uma porta e a escancarou.
Alcancei a mesma, com a respiração levemente ofegante. Estava já sem fôlego, exausta.
Precedeu-me no interior do quarto, com um sorriso hospitaleiro sobre os lábios.
“Espero que goste, senhorita Bruno. A propósito... se pronuncia Bruno ou Bruno?”
“Bruno. Meu pai era de origem italiana” respondi, os olhos submersos a contemplar o quarto.
A senhora Mc Millian recomeçou a tagalerar, contando-me várias anedotas sobre a sua breve permanência jovem na Itália, em Florença e das suas sucessivas vicissitudes como estudante de história da arte às voltas com a rígida burocracia local.
Fiquei a escutar só pela metade, muito emocionada para fingir interesse. Aquele quarto, que ela definia como simples, era o triplo do meu buraco londrino! As minhas dúvidas iniciais foram afastadas. Apoiei a mala sobre a cômoda e voltei a olhar para a grande cama com dossel, antigo como o resto da mobília. Um escritório, um armário, uma cômoda, um tapete sobre o piso de madeira, uma janela entreaberta. Eu me dirigi para aquela direção e a abri toda, desfrutando do panorama esplêndido que me circundava. Ao longe, era vista a vila, levemente tocada durante o percurso de autocarro, empoleirado sobre o outro lado da colina, uma borda de rio que desaparecia à minha direita, escondida pela densa vegetação e o jardim abaixo, bem cuidado e rico de plantas.
“Adoro me ocupar do jardim”, prosseguiu destemida a governanta, deixando-me ao lado. "Em especial, amo as rosas. Como vê, colhi um maço para a senhor".

Virei-me, notando só então que o grande vaso sobre a cômoda, preenchido com um imenso buquê de rosas. Ultrapassei rapidamente a distância que me separava dele e aspirei às suas pétalas carnosas. O perfume inebriou-me por um instante, atingindo quase a cabeça, a provocar uma leve tontura.
Pela primeira vez, em meus vinte e dois anos de vida, senti-me em casa. Como se atracada finalmente num porto seguro e acolhedor.
“Gosta de rosas brancas, senhorita? Talvez preferia alaranjadas ou cor de rosa. Ou quem sabe amarelas...”
Voltei à terra, arrastada à força por aquela pergunta insidiosa, mesmo se pronunciada de modo inocente e alheio por aquela mulher gentil.
“Gosto de todas. Não tenho preferências”, murmurei, fechando os olhos.
“Aposto que gosta delas vermelhas. Todas as mulheres gostam das rosas vermelhas. Porém me pareceram inadequadas... Quero dizer... Deviam ser presenteadas somente por um pretendente... A senhorita Bruno é noiva?”
“Não”. A minha voz era um pouco mais de um sopro, o tom cansado, de quem nunca deu uma resposta diferente.
“Que boba. É óbvio que não é. Se o fosse, não estava aqui, neste lugar perdido, afastado do seu amor. Aqui duvido que encontrará alguém...”
Reabri os olhos. “Não estou a procurar um noivo”.
A sua expressão se acalmou. “Então não ficará desiludida. Aqui é praticamente impossível realizar algum encontro. Todos já estão acompanhados. Ficam noivos literalmente em filas ou o mais tardar nos bancos do asilo... Sabe como são as pequenas comunidades rurais, fechadas ao novo e ao diferente”.
E eu era assim, diferente. Irremediavelmente diferente.
“Como lhe disse, não será um problema para mim” disse em tom decidido.
“Os seus cabelos são de um vermelho maravilhoso, senhorita Bruno. Invejável, diria. Dignos de uma escocesa, mesmo se sei que não o é”.
Passei distraidamente a mão nos cabelos, esboçando um sorriso tenso. Não respondi, habituada como eu era com aquele tipo de comentário.
Ela voltou a tagarelar e de novo me distrai, a mente tomada de lembranças venenosas, as mais lentas a evaporar, as mais relutantes a desvanecer e as mais rápidas a serem evocadas.
Para não me deixar atingir ainda mais pelas farpas obscuras da memória interrompi a narração de uma outra anedota.



“Qual será o meu horário de trabalho?”
A mulher concordou em sinal de aprovação, descobrindo a minha dedicação ao trabalho. “Das nove da manhã às cinco da tarde, senhorita. Obviamente, terá uma pausa para o almoço. A este fim, a informo que o senhor Mc Laine prefere almoçar no quarto, em completa solidão. Temo que não será de muita companhia”. Esboçou uma careta de pena e o seu tom se tornou de desculpas. “É um homem muito amargurado. Sabe... por causa da tragédia... É como um leão na jaula e acredite em mim... quando ruge, dá vontade de largar tudo e ir embora... Como fizeram outras três secretárias antes da senhorita...” Os seus olhos pareceram me examinar, agudos como lentes de aumento. “A senhorita me parece com maior bom senso e sentido prático... Espero que resista mais tempo, desejo isso de coração...”
“Apesar da aparência magra e frágil, tenho uma paciência infinita, senhora Mc Millian. Garanto que farei o meu melhor para estar à altura” prometi, com todo o otimismo que consegui reunir.
A mulher me deu um amplo sorriso, conquistado pela solenidade da minha declaração. Desejei não ter vendido a pele de urso antes de o capturar.
A mulher foi até à porta, ainda sorridente. “O senhor Mc Laine a espera daqui a uma hora no seu escritório, senhorita Bruno. Não deixe que a intimide. Encare-o, é o único modo para não ser mandada embora na primeira ocasião”.
Bati as pálpebras, submersa pela agitação inicial. “Gosta de colocar as pessoas em dificuldades?”
Ela ficou séria. “É um homem duro, mas correto. Digamos que não aprecia os coelhos e faz de tudo para os comer numa só mordida. O problema é que muitos tigres se transformam em coelhos na sua presença...”
Cumprimentou-me com um sorriso e saiu do quarto, ignorando o ciclone que se aninhava na minha cabeça, gerado pelo seu discurso final.
Voltei à janela. A brisa tinha sumido, substituída por um calor incomum abafado, mais característico do Continente que daquele de território.
Com fadiga, deixei a mente em repouso, ao afastar os pensamentos nocivos. Era de novo uma página branca, intocada, fresca, livre de cada preocupação.
Com a certeza fulminante de quem conhece a si mesmo, sabia que aquela paz era relativa, efêmera como uma pegada na areia, pronta a ser apagada pela maré que se retrai.
O acolhimento da senhora Mc Millian não devia me levar ao engano.



Ela era uma simples dependente, nem mais nem menos da subscrita. Era agradável, muito se pensarmos bem, se era da minha parte e se tinha me oferecido uma cúmplice aliança com tal espontaneidade, porém não devia esquecer que o meu empregador era outro. A minha permanência naquela casa, tão agradável e assim diferente de qualquer lugar que eu jamais tinha conhecido, dependia exclusivamente dele. Ou principalmente pela impressão que eu tinha lhe dado. Eu. Somente eu. Dele sabia muito pouco para relaxar. Um só homem, condenado a uma prisão pior que a morte, relegado a uma vida pela metade, um escritor solitário e de péssimo caráter... Segundo as veladas alusões da minha guia, se tratava de um homem que sentia prazer ao colocar as pessoas em embaraço, talvez amava desabafar a sua sede de vingança contra os outros, sem poder culpar a sua única inimiga: a sorte. Cega, vendada, indiferente aos sofrimentos causados por todo lado, democrática num certo sentido.
Deu um profundo suspiro. Se a minha estada naquela casa era destinada a ser breve, tanto valia não desfazer a bagagem. Não me agradava perder tempo.
Vaguei pelo quarto, ainda incrédula. Demorei na frente do espelho pendurado sobre a cômoda e voltei a olhar tristemente o meu rosto. Os meus cabelos eram vermelhos, certo. Sabia só porque outros me diziam, eu não era capaz de estabelecer sua cor. Eu vivia em preto e branco, eu também prisioneira como o senhor Mc Laine. Não de uma cadeira de rodas, talvez, porém incompleta por minha vez. Passei um dedo sobre uma escova de prata, pousada sobre a cômoda junto a outros objetos da penteadeira, um objeto lindo, de valor, colocado à minha disposição com uma generosidade inigualável.
Os olhos percorreram até o grande relógio de parede e me fizeram lembrar, quase que perfidamente, o encontro com o dono da casa.
Não podia demorar.
Não no nosso primeiro encontro.
Talvez o último, se não conseguia... Como tinha dito a senhora Mc Millian? Ah, sim. Enfrentá-lo. Uma palavra para a princesa dos coelhos. A minha palavra preferida, aquela mais frequentemente usada, era desculpe, declinada segundo as circunstâncias em 'desculpe-me' ou desculpem-me'. Mais cedo ou mais tarde, eu tinha que pedir desculpas por existir. Endireitei os ombros, num sobressalto de orgulho. Ia vender cara a pele. Eu tinha ganho o direito, o prazer, de estar naquela casa, naquele quarto, naquele canto do mundo.
No corredor, ao chegar nas escadas, os ombros voltaram a se curvar, a mente a gritar, o coração a pular. A minha tranquilidade tinha durado... quanto? Um minuto? Quase um recorde.

Segundo capítulo






Ao alcançar o corredor, estava consciente da minha inevitável ignorância. Onde era o escritório? Como ia fazer para o encontrar, se mal consegui chegar até ali? Antes de me afundar na lama de desespero, fui resgatada pela intervenção providencial da senhora Mc Millian, um sorriso amplo sobre o vulto magro.
“Senhorita Bruno, estava a vir exatamente a chamá-la...” Lançou um rápido olhar ao relógio de pêndulo na parede. “Que pontualidade! A senhorita é realmente uma pérola rara! Tem certeza de ter origens italianas e não suíças?" Sorriu sozinha com a brincadeira.
Sorri educadamente, ao adequar o passo ao seu, enquanto subíamos as escadas. Ultrapassamos a porta do meu quarto, dirigindo-nos aparentemente ao fundo do corredor, por meio de uma porta pesada.
Sem cessar o seu falatório estridente, bateu levemente à porta, três vezes e a entreabriu.
Fiquei atrás dela, as pernas já trêmulas, enquanto ela espreitava no interior do quarto.
“Senhor Mc Laine... aqui está a senhorita Bruno”.
“Já era hora. Está atrasada”. A voz soou áspera, rude.
A governanta explodiu numa risada impetuosa, avessa ao mau humor do dono de casas.
“Só em um minuto, senhor. Não se esqueça que é nova na casa. Fui eu que a fiz demorar porque...”
“Deixe-a passar, Millicent”. A interrupção foi brusca, quase uma chicotada e eu pulei para o lugar da outra mulher que, com calma, se voltou para olhar-me.
“O senhor Mc Laine a aguarda, senhorita Bruno. Por favor, entre”.
A mulher recuou, ao fazer um sinal para eu entrar. Dirigi a ela um último olhar preocupado. Ela, para me encorajar, sussurrou "Boa sorte”.
Pronto, tinha surtido o efeito contrário. O meu cérebro tinha se reduzido a um purê liquefeito, sem lógica ou cognição do tempo e do espaço.



Arrisquei um tímido passo no interior do quarto. Antes de ver qualquer coisa, ouvi a voz de antes que estava a se despedir de alguém.
“Pode ir, Kyle. Iremos nos ver amanhã. Seja pontual, por favor. Não vou tolerar outros atrasos”.
Um homem estava de pé, a poucos passos de mim, alto e robusto. Fixou-me e acenou uma saudação com a cabeça, em seu olhar um brilho de apreciação enquanto passava por mim.
“Boa tarde”.
“Boa tarde”, respondi em seguida, fixando-o mais que o devido para atrasar o momento em que tinha me tornado ridícula, tinha ignorado as expectativas da senhora Mc Millian e as minhas esperanças tolas.
A porta se fechou às minhas costas e me lembrou as boas maneiras.
“Boa tarde, senhor Mc Laine, me chamo Melisande Bruno, venho de Londres e...”
“Poupe-me o relato das suas competências, senhorita Bruno. Modestas também”. A voz agora era entediada.
Os meus olhos se elevaram, prontos finalmente para encontrar aqueles do meu interlocutor. E quando o fizeram, agradeci aos céus de o ter saudado logo. Porque agora ia ter sérias dificuldades para lembrar até o meu nome.
Estava sentado do outro lado da escrivaninha, na cadeira de rodas, uma mão estendida na borda, a tocar a madeira, a outra a segurar uma caneta, os olhos escuros fixos nos meus, insondáveis. Ainda uma vez, a enésima, lamentei não poder ver as cores. Tinha dado de boa vontade um ano de vida para distinguir as cores de seu rosto e dos seus cabelos. Mas esta alegria me era impedida. Sem apelo. Em um clarão de lucidez pensei que era bonito assim: o rosto de uma palidez não natural, olhos pretos, sombreados por longos cílios, os cabelos pretos, ondulados e cheios.
“É muda, por acaso? Ou surda?”
Voltei ao chão, precipitando de alturas vertiginosas. Pareceu quase sentir a queda dos meus membros no piso. Um alto e sinistro rugido, seguido por um estalido amedrontador e devastante.
“Desculpe-me, fiquei distraída” murmurei, corando no mesmo instante.
Ele olhou para mim com uma atenção que me pareceu exagerada. Parecia memorizar cada uma das linhas do meu rosto, parando na minha garganta. Corei ainda mais. Pela primeira vez, desejei ardentemente que o meu defeito de nascença fosse compartilhado por um outro qualquer ser humano. Teria sido menos embaraçante pensar que o senhor Mc Laine, na sua aristocrática e triunfante beleza, não pudesse notar a vermelhidão afluir violentamente sobre cada centímetro de pele descoberta.
Balancei-me sobre os pés, incomodada sob aquele exame visual descaradamente descoberto. Ele continuou a sua análise, passando aos meus cabelos.
“Devia pintar os cabelos ou acabarão por confundi-los com o fogo. Não queria que acabasse sob a incursão de cem extintores”. A expressão inescrutável se animou um pouco e uma centelha de diversão brilhou nos seus olhos.
“Não fui eu a escolher esta cor” disse, recolhendo toda a dignidade da qual fui capaz. “Mas o senhor”.
Levantou uma sobrancelha. “É religiosa, senhorita Bruno?”
“E o senhor?”
Pousou a caneta sobre a escrivaninha, sem desgrudar os olhos de cima de mim. “Não há provas que Deus exista”.
“Nem que não exista” respondi em tom de desafio, surpreendendo a mim mesma pela veemência com a qual falei.
Os seus lábios se curvaram num sorriso zombeteiro, depois me indicou a pequena poltrona estofada. “Sente-se”. Deu-me uma ordem, mais do que efetuar-me um convite. No entanto, obedeci no instante.
“Não respondeu à minha pergunta, senhorita Bruno. É religiosa?”
“Sou crente, senhor Mc Laine” confirmei em voz baixa. “Porém não sou muito praticante. Aliás, não sou de forma alguma”.
“A Escócia é uma das poucas nações anglo-saxónica a praticar o catolicismo com um fervor e uma devoção incomparáveis”. A sua ironia era inequívoca. “Eu sou a exceção que confirma a regra... Não se diz assim? Digamos que acredito só em mim mesmo e naquilo que posso tocar”.
Apoiou-se largamente no encosto da cadeira de rodas, batendo com a ponta dos dedos nos seus braços. Mesmo assim, não pensei, nem por um milésimo de segundo, que era vulnerável ou frágil. A sua expressão era aquela de quem escapou das chamas e não tem medo de se lançar de novo nelas, se o considerar necessário. Ou simplesmente, se tem vontade. Afastei com dificuldade os olhos do seu rosto. Era reluzente, quase perolado, um branco brilhante e polido, diferente dos rostos comuns que me rodeavam. Era exaustivo olhar para ele e também ouvir a sua hipnótica voz. Uma serpente encantadora e qualquer mulher ia ficar muito feliz de sofrer seu feitiço, a secreta magia que emanava dele, daquele rosto perfeito, do seu olhar zombeteiro.



“Então, é a minha nova secretária, senhorita Bruno”.
“Se quiser confirmar me contratar, senhor Mc Laine” disse, elevando o olhar.
Ele sorriu, ambíguo. “Por que devo contratá-la? Porque não vai todos os domingos à igreja? Julga-me muito superficial se pensa que sou capaz agora de mandá-la embora ou... mantê-la aqui com base em algumas conversas”.
“Nem eu a conheço bastante para formular um juízo seu assim pouco lisonjeiro” concordou com um sorriso. “Estou consciente porém que uma profícua relação de trabalho nasce também de uma imediata simpatia, de uma primeira impressão favorável”.
A sua risada foi tão inesperada a ponto de fazer-me estremecer. Com a mesma rapidez com a qual surgiu, se apagou. Fixou-me gelidamente.
“Acredita realmente que é fácil encontrar empregados dispostos a se transferir para esta vila esquecida de Deus e do mundo, longe de qualquer diversão, de cada centro comercial ou discoteca? A senhorita foi a única a responder ao anúncio, senhorita Bruno”.
A diversão estava em espreita, por trás do gelo dos seus olhos. Uma placa de gelo preto, partida por uma fina fissura de bom humor que aqueceu-me a alma.
“Então não terei que preocupar-me com a concorrência” disse, ao cruzar nervosamente as mãos no colo.
Ele me examinou ainda, com a mesma curiosidade irritante com a qual se olha um animal raro.
Engoli a saliva, ostentando uma desenvoltura fictícia e perigosamente precária. Por um instante, exatamente o tempo de formular um pensamento, disse a mim mesma que devia fugir daquela casa, daquele quarto transbordante de livros, daquele homem inquietante e belíssimo. Sentia-me como um gatinho indefeso, a poucos centímetros das garras de um leão. Predador cruel, presa impotente. Depois, a sensação esvaneceu e me considerei uma boba. Diante a mim estava um homem de personalidade exuberante, arrogante e prepotente, mas obrigado há tempo a ficar numa cadeira de rodas. Eu era a presa da vez, uma garota tímida, medrosa e relutante às mudanças. Por que não deixá-lo fazer? Se o divertia brincar comigo, por que impedir a única ocasião de diversão, de passatempo que tinha? Era quase nobre da minha parte, num certo sentido.
“O que pensa de mim, senhorita Bruno?”



Ainda uma vez o forcei a repetir a pergunta e mais uma vez o peguei de surpresa.
“Não pensava que era tão jovem”.
Endureci no momento e fiquei sem fala, com medo de machucá-lo de algum modo. Ele se recompôs e me gelou com outro dos seus sorrisos emocionantes. “Mesmo?”
Agitei-me na cadeira, indecisa sobre como prosseguir. Depois me decidi, ao recolher toda a minha coragem e estimulada pelo seu olhar preso ao meu, numa dança muda e não por isso menos emocionante, voltei a falar.
“Bem... escreveu o seu primeiro livro vinte e cinco, quinze anos atrás, pelo que me resulta. E mesmo assim, parece um pouco mais velho que eu” considerei quase como distraidamente.
“Quantos anos tem, senhorita Bruno?”
“Vinte e dois, senhor” respondi, envolvida novamente pela profundidade dos seus olhos.
“Sou muito velho para si, senhorita Bruno” disse com um riso silencioso. Depois abaixou o olhar e a fria noite invernal voltou a envolvê-lo entre as suas espirais, mais cruel que uma serpente. Cada vestígio de calor desapareceu. “Assim, pode ficar tranquila, Não deverá temer por assédio sexual enquanto dorme na sua cama. Como vê, sou condenado à imobilidade”.
Calei-me porque não sabia o que responder. O seu tom era amargurado e sem esperança, o rosto esculpido na pedra.
Os seus olhos sondaram os meus, a procura de algo que parecia não encontrar. Concedeu-se um pequeno sorriso. “Ao menos, não há piedade nela. Isto me alegra. Não a quero, não preciso disso. Sou mais feliz que muitos outros, senhorita Bruno porque sou livre, completamente, do modo mais absoluto”. Franziu as sobrancelhas. “O que está a fazer aqui ainda? Pode ir”.
O tom seco me deixou perplexa. Levantei-me incerta e ele aproveitou para desafogar sobre mim a sua cólera.
“Ainda aqui? O que deseja? Já o seu salário? Ou quer falar do seu dia de folga?” acusou-me irado.
“Não, senhor Mc Laine”. Desajeitadamente, dirigi-me à porta. A minha mão já estava sobre a maçaneta, quando me parou.
“Às nove da manhã, senhorita Bruno. Estou a escrever um novo livro, o título é mortos sem sepultura. Acha muito macabro?” O seu sorriso se tornou bem mais intenso.
A brusca mudança de humor devia ser um traço dominante do seu caráter. Esforcei-me para lembrar no futuro ou arriscava a ter uma crise histérica ao menos vinte vezes ao dia. “Parece interessante, senhor” respondi com cautela.
Virou a cabeça para trás e explodiu numa grande risada. “Interessante! Aposto que nunca leu um dos meus livros, senhorita Parece-me de estômago delicado... Não ia dormir à noite, atormentada pelos pesadelos...” Riu de novo, passando a tratá-la com mais intimidade com a mesma rapidez com a qual mudava de humor.
“Não sou tão sensível como parece, senhor” respondi modestamente, desencadeando uma outra onda de risadas.
Com as mãos manobrou a cadeira de rodas com uma habilidade felina e admirável, nascida a anos e anos de hábito e veio numa velocidade extraordinária ao meu lado. Tão próximo a tornar inútil qualquer minha tentativa de formular um pensamento racional. Instintivamente, recuei um passo. Ele fingiu não notar o meu movimento e indicou a biblioteca à minha direita.
“Pegue o quarto livro à esquerda, terceira prateleira”.
Obediente, peguei o livro que me indicava. O título me era familiar porque tinha feito uma busca sobre ele na Internet antes de partir, porém efetivamente nunca tinha lido nada dele. Terror não era o meu género, decididamente mais adequado a paladares fortes e inadequado ao meu, delicado e romântico.
“Zumbis a caminho” li em voz alta.
“É o mais adequado para começar. É o menos... como dizer? Menos assustador?” Riu com gosto, claramente de mim e pelo desconforto decididamente pouco velado que transparecia de cada poro do meu corpo.
“Por que não o começa esta noite? Só para se preparar no seu novo trabalho” ele sugeriu, os olhos risonhos.
“Ok, vou fazê-lo” respondi com muito pouco entusiasmo.
“Até amanhã de manhã, senhorita Bruno” disse ele, o ar de novo grave. “Feche-se no quarto, não queria que os espíritos do palácio fossem fazer-lhe uma visita esta noite ou qualquer outra temível criatura noturna. Sabe como é...” Fez uma pausa, um raio de hilaridade no escuro dos seus olhos. “Como falei antes, é duro encontrar empregados por estes lados”.
Tentei um sorriso, pouco convincente tudo junto.
“Boa noite, senhor Mc Laine”. Antes de fechar a porta a vontade de dizer algo saía pelos lábios, sem poder segurar. "Não acredito nos espíritos ou nas criaturas noturnas”.
“Está certa disso?”
“Não há provas da sua existência, senhor” respondeu, fazendo-lhe involuntariamente o sentido.
“Nem do fato que não existem” rebateu ele. Rodou a cadeira de rodas e voltou por trás da escrivaninha.
Fechou delicadamente a porta, o coração sob a terra. Talvez ele tinha razão e os zumbis existem. Porque naquele momento, eu me sentia um deles. Transtornada, o cérebro perdeu a lucidez, suspensa em um limbo no qual não sabia mais distinguir entre o real e o irreal. Pior que não saber distinguir as cores.
Jantou sem vontade em companhia da senhora Mc Millian, a cabeça longe, em bem outra companhia. Temia que ia recuperá-la só no dia seguinte pela manhã, ao voltar para aquele onde a tinha deixado. Algo me dizia que não eram boas mãos aquelas as quais o meu coração certo o tinha confiado.
Da conversa daquela noite com a governanta, lembro muito pouco. Ela falou sozinha, sem parar. Parecia estar no sétimo céu por ter finalmente alguém para com quem falar. Ou melhor, que para escutá-la. Eu era perfeito nesse sentido. Muito educado para interrompê-la, muito respeitosa para mostrar meu desinteresse, muito ocupada para pensar em algo mais para mostrar a necessidade de ficar sozinha. Assim, eu podia pensar nele.
No meu quarto, uma hora depois, sentada confortavelmente na cama, com a cabeça apoiada nos travesseiros, abri o livro e mergulhei na leitura. Na segunda página, eu já estava aterrorizada e de modo reprovável, considerando que era simplesmente um livro.
Apesar do bom senso de que, teoricamente, eu era bem provida, a atmosfera na sala parecia sufocante e o desejo de um sopro de ar fresco se fez inevitável.
Descalça, atravessei a sala escura na penumbra e escancarei a janela. Sentei-me no peitoril da janela, imergindo-me na quente noite de início de verão, o silêncio quebrado apenas pelo disparo dos grilos e pelo som de uma coruja. Era bom estar lá, longe anos luz do frenesi de Londres, de seus implacáveis ritmos, sempre no fio da histeria. A noite era uma colcha preta, a parte o branco de alguma estrela aqui e ali. Eu gostava da noite e pensei ociosamente que teria gostado de ser uma criatura noturna. A escuridão era minha aliada. Sem luz tudo é preto e a minha incapacidade genética de distinguir as cores diminuía, perdia importância. À noite, meus olhos eram idênticos aos de outra pessoa. Por algumas horas, eu não me sentia diferente. Um alívio momentâneo claro, mas refrescante como a água sobre a pele aquecida.
Na manhã seguinte, acordei ao som do despertador e fiquei alguns minutos na cama, aturdida. Depois de um atordoamento inicial, lembrei do que tinha acontecido no dia anterior e reconheci o quarto.
Após me vestir, desci as escadas, quase assustada com o profundo silêncio que me rodeava. A visão de Millicent Mc Millian, alegre e falador como sempre, dissolveu o nevoeiro e trouxe o sereno para minha mente turbulenta.
"Dormiu bem, senhorita Bruno?" disse.
"Nunca melhor", falei, surpresa eu mesma com aquela novidade. Há anos que não me abandonava assim serenamente ao sono, os pensamentos negativos afastados por ao menos algumas horas.
“"Quer um café ou um chá?"
"Chá, por favor", implorei, sentada na mesa da cozinha.
"Vá para a sala de estar, vou servi-lo lá".
"Eu prefiro tomar café da manhã consigo", eu disse, sufocando um bocejo.
A mulher parecia satisfeita e começou a andar em torno ao fogão. Ela retomou a conversa habitual e eu estava livre para pensar em Monique. O que estava fazendo àquela hora? Já tinha preparado o café da manhã? O pensamento da minha irmã recolocou o peso sobre meus ombros delgados e, com prazer, acolhi com alegria chegada da xícara de chá.
"Obrigado, Sra. Mc Millian". Degustei com prazer o líquido quente e agradavelmente perfumado, enquanto a governanta servia o pão tostado e uma série de tigelas cheias com várias geléias convidativos.
"Pegue a de framboesas. É fabulosa. "
Eu peguei a bandeja, meu coração já estava em fibrilação. Minha diversidade voltou ao salmão, escuro e mal cheiro. Por que eu sou? E em todo o mundo havia outros como eu? Ou eu era uma anomalia isolada, uma brincadeira maluca da natureza?
Peguei uma tigela ao acaso, esperando que a velha estivesse muito focada para falar sobre meu erro. Os engarrafamentos eram cinco, então eu tive uma chance em cinco, dois em dez, vinte por cento para escolher o caminho certo na primeira tentativa.
Ela correu para me consertar, menos distraída do que eu pensava. "Não, senhorita. Isso é laranja.” Ele sorriu, sem consciência a agitação que me montou e meu rosto suado de suor. Ele passou por uma tigela. "Aqui, é fácil confundi-lo com os morangos".
Ela não notou meu sorriso forçado e retomou a história de suas aventuras amorosas com um jovem florentino que terminou de plantá-la para uma América do Sul.
Lamentava mal, ainda esticado pelo acidente antes, e já me arrependi de não ter aceitado a proposta de comer sozinha. Nesse caso, não haveria problemas. Evite situações potencialmente críticas: foi meu mantra. Desde então. Eu não tive que deixar a atmosfera deliciosa daquela casa me empurrar em atos ávidos, esquecendo a necessária prudência. Mc Millian parecia uma mulher inteligente, inteligente e pensativa, mas ela estava exagerada conversando. Eu não podia contar com o seu critério.
Ela fez uma pausa para o chá e aproveitou para lhe fazer algumas perguntas. "Trabalha para o Sr. Mc Laine por muitos anos?"
Ela se alegrou, feliz por poder dar à luz novas anedotas. "Eu estive aqui por quinze anos. Cheguei alguns meses depois do acidente acontecer com o Sr. Mc Laine. Aquele em que... bem, entendeu, não?. Todos os empregados anteriores foram mandados embora. Parece que o Sr. Mc Laine era um homem muito alegre, cheio de vontade de viver, sempre contente. Agora, infelizmente, as coisas mudaram. "
"Como aconteceu? Quero dizer... O acidente? Isto é... perdoa a minha curiosidade, é imperdoável. " Mordi meu lábio, com medo de ser mal interpretada.
Ela balançou a cabeça. "É normal fazer perguntas, faz parte da natureza humana. Eu realmente não sei o que aconteceu exatamente. Na aldeia, eles me disseram que o Sr. Mc Laine ia se casar no dia seguinte após o acidente de carro e, claro, não foi feito mais nada. Alguns dizem que estava bêbado, mas são notícias sem fundamento, na minha opinião. O que sabes com certeza é que ele saiu da estrada para evitar uma criança ".
A minha curiosidade foi reorientada, alimentada pelas suas palavras. "Criança? Eu tinha lido na internet que o acidente aconteceu à noite. "
Ela encolheu os ombros. "Sim, parece que era o filho do farmacêutico. Tinha fugido de casa porque tinha colocado na cabeça de se juntar à companhia de circo, em turnê na área ".
Remoí aquela notícia. Isso explicava as bruscas mudanças de humor do Sr. Mc Laine, seu perene mau humor, a sua infelicidade. Como não entender isso? O seu mundo tinha desmoronado, partido em pedaços, como resultado de um destino miserável. Um homem jovem, rico e bonito, um escritor bem-sucedido, prestes a coroar seu sonho de amor... E em questão de poucos segundos perdeu grande parte do que tinha. Eu nunca tinha passado por tal desventura, podia só imaginá-la. Não se pode perder o que não se tem. A minha única companheira sempre foi Nada.
Um rápido olhar para o relógio de pulso confirmou que era hora de ir. Meu primeiro dia de trabalho. Meu coração acelerou e em um vislumbre de lucidez eu me perguntei se dependia do novo emprego ou do misterioso dono daquela casa.
Subi as escadas de dois em dois degraus com o medo irracional de chegar atrasada. No corredor cruzei com Kyle, a enfermeira que fazia de tudo. "Bom dia."
Desacelerei, com vergonha da minha pressa. Eu devia parecer uma insegura ou pior uma exaltada.
"Bom dia."
"Senhorita Bruno, não é? Posso tratá-la sem tanta cerimônia? No fundo, estamos no mesmo barco, à mercê de um louco louco. " A aspereza brutal de suas palavras deixou-me espantada.
"Eu sei, sou desrespeitoso para com o meu empregador, etc., e assim por diante. Logo, aprenderás a me dar razão. Como te chamas? "
"Melisande".
Ele insinuou uma reverência desajeitado. "Encantado em conhecer-te, Melisande de cabelos ruivos. Seu nome é realmente estranho, não é escocês... Mesmo se pareces mais escocesa do que eu. "
Eu dei um sorriso de pura cortesia e tentei ultrapassá-lo, ainda com medo de me atrasar. Mas ele bloqueava meu caminho, parado com as pernas esticadas no patamar. Foi a intervenção oportuna de uma terceira pessoa a quebrar o fio.
"Senhorita Bruno! Não suporto os atrasos! "O grito veio indubitavelmente do meu novo empregador, e fez meu cabelo se arrepiar na nuca.
Kyle se deslocou imediatamente, deixando que eu passasse. "Boa sorte, Melisande de cabelos ruivos. Irás precisar disso. "
Lancei-lhe um olhar feroz e corri para a porta no fundo do corredor. Estava entreaberta e um anel de fumaça saia dela.
Sebastian Mc Laine estava sentado atrás da escrivaninha como no dia anterior, um cigarro entre os dedos, o rosto inflexível.



"Feche a porta, por favor. E então sente-se. Perdemos tempo suficiente enquanto confraternizava com o resto do pessoal". O tom era duro, insultante.
Um movimento rebelde me levou a replicar, um cordeiro temerário diante de um cutelo.
"Era só cortesia normal. Ou prefere uma secretária mal educada? Nesse caso, eu também posso remover as tendas. De agora em diante. "
Minha resposta impulsiva o pegou de surpresa. Seu rosto iluminou-se com espanto, o mesmo que eu provavelmente refleti sobre isso. Nunca tinha sido tão audacioso.
"E eu que já a tinha rotulado isso como um cachorro sem dentes ... Fui apressado ... Realmente apressado".
Eu me sentei na frente dele, minhas pernas que não estavam mais me segurando, esmagada por minha frenética franqueza. E aterrorizada com as potenciais, explosivas consequências.
Meu empregador não parecia ofendido, na verdade. Ele sorria. "Qual é o seu nome de batismo, senhorita Bruno?"
"Melisande", respondi automaticamente.
"De Debussy, eu acho. Os seus pais gostavam de música? Concertos, talvez? "
"Meu pai era um mineiro", confessei com relutância.
"Melisande ... Um nome altissonante para a filha de um mineiro", ele observou, a voz vibrante de uma risada reprimida. Ele estava a brincar comigo e, apesar das intenções do dia anterior, não tinha certeza de que ele queria deixar de fazer isso. Ou teria se tornado a sua atividade preferida.
Endireitei meus ombros, tentando recuperar a compostura perdida. "E Sebastian, por quê? De San Sebastian, talvez? Realmente incongruente como escolha ".
Tinha sido certeira, ele encrespou o nariz por um momento infinitesimal. "Guarde as garras, Melisande Bruno. Não estou em guerra contigo. Se assim o fosse, tu não terias esperanças de ganhar. Nunca. Nem nos teus mais ousados ​​sonhos.
"Eu nunca sonho, senhor", respondi o mais dignamente possível.
Ele parecia impressionado com a minha resposta, com tal sinceridade. "Tu és afortunada então. Os sonhos são sempre um embuste. Se são pesadelos, perturbam o teu sono. Se são belos, o despertar será duplamente amargo. É melhor não sonhar, afinal. " Seus olhos não se separaram dos meus, encantadores. "Tu és um personagem interessante, Melisande. Um passarinho, mas engraçado ", acrescentou em tom melancólico.
"Que bom que eu tenha os requisitos para esse trabalho, então", eu disse ironicamente.
Torturei meu lábio inferior com os dentes, dominados pelo arrependimento. O que estava a acontecer comigo? Nunca reagi com um impulso tão deplorável. Tive que dar um corte antes de perder o controle completamente.
O seu sorriso agora ia de uma orelha para outra, divertido além das palavras. "Tu as tens realmente. Tenho certeza que nos acertaremos. Uma secretária que não sabe sonhar, como seu chefe. Há uma afinidade eletiva entre nós, Melisande. De almas, em certo sentido. Se não fosse que um de nós tem mais de uma e por muito tempo afinal... "
Antes que pudesse dar um sentido às suas palavras obscuras, ele voltou a ficar sério, seus olhos novamente destacados, a expressão inescrutável, distante e sem vida.
"Deves enviar o fax dos primeiros capítulos do livro para o meu editor. Sabes como fazê-lo? "
Concordei e de repente percebi que eu já sentia a falta de nosso duelo verbal. Eu queria que fosse infinito. Eu tirei dessa troca como uma fonte milagrosa, a me preencher com uma vitalidade exuberante, uma energia sem precedentes para mim.
As duas horas seguintes voaram. Enviei vários faxes, abri o correio, escrevi cartas de recusa a vários convites e reorganizei minha mesa. Ele, em silêncio, escrevia no computador, a fronte enrugada, os lábios estreitos, suas mãos brancas e elegantes que voavam no teclado. Lá pela hora do almoço, chamou a minha atenção com um aceno da mão.
"Podes fazer uma pausa, Melisande. Quem sabe comer algo ou dar uma volta ".
"Obrigada, senhor".
"Começou a ler meu livro, aquele que eu te dei?" Seu rosto ainda estava longe, imóvel, mas achei um brilho de bom humor naqueles olhos negros.
"Estava certo, senhor. Não é exatamente o meu género", confiei com toda sinceridade.
Os seus lábios se curvaram levemente, com um sorriso oblíquo, capaz de penetrar na armadura das minhas defesas. Armadura que eu pensava era mais forte do que o aço.
"Eu não duvidei disso. Aposto que tu és mais um tipo de Romeu e Julieta". Não houve ironia em sua voz, apenas se limitou a fazer uma declaração.
"Não, senhor". A controvérsia tornou-se natural para mim, como se nos conhecêssemos desde sempre, e eu podia ser eu mesma, totalmente, sem subterfúgios ou máscaras. "Eu amo histórias com final feliz. A vida já é muito amarga, para aumentar a dose com um livro. Se eu não tenho permissão para sonhar à noite, quero fazê-lo ao menos de dia. Se eu não tenho permissão para sonhar na vida, eu quero fazê-lo ao menos com um livro ".
Ele considerou atentamente minhas palavras, por tanto tempo, pensei que ele não ia me responder. Quando eu estava prestes a fazer uma pausa, ele me parou.
"A Sra. Mc Millian explicou o nome desta casa?"
"Ela pode até ter feito isso", admiti com um meio sorriso. "Tenho medo de ter prestado atenção só à metade".
"Sim, eu me perco após a décima palavra", ele elogiou sem ironia. "Nunca tive um espírito de sacrifício. Sou egoísta e pronto".
"Às vezes tu tens de ser" eu disse. "Ou serás triturado pelas expectativas dos outros. E acabarás vivendo uma vida não tua, mas aquela que outros decidiram para ti".
"Muito sábia, Melisande Bruno. Encontraste, só com vinte e dois anos, a chave da serenidade do espírito. Não é para todos ".
"Serenidade?" repeti amarga. "Não, a sabedoria de entender algo não significa necessariamente aceitá-lo. A sabedoria nasce na cabeça, o coração segue seus caminhos, independentes e perigosos. E tende a fazer desvios fatais ".
Ele moveu a cadeira de rodas, vindo para o meu lado na escrivaninha, os olhos penetrantes. "Então? Estás curiosa de saber o motivo do nome Midnight Rose? Ou não? "
"Rosa da meia-noite" traduziu, lutando com a emoção de tê-lo tão perto. Fugi por muito tempo da companhia masculina, desde o dia do meu primeiro e único compromisso. Tão desastroso que me marcou para sempre.
"Exatamente. Nesta área há uma lenda, antiga há séculos, talvez por milênios, segundo a qual, se assistimos o florescer de uma rosa à meia-noite, o nosso maior e secreto desejo será realizado por magia. Mesmo se for um desejo sombrio e maldito ".
Apertou as mãos em punho, quase que desafiando-me com o olhar.

"Se um desejo é aquele de nos deixar felizes, nunca é obscuro e maldito", eu disse com calma.
Ele olhou para mim com atenção, como se não acreditasse em seus ouvidos. Um riso demoníaco escapou dele. Um tremor me serpenteei ao longo das minhas costas.
"Muito sábia, Melisande Bruno. Eu tê-lo concedo. Palavras escandalosas para uma menina que não mataria um mosquito sem chorar ".
"Uma mosca, talvez. Com um mosquito, eu não teria problemas ", disse lapidária.
Novamente, ele ficou atento, uma chama longe a aquecer o gelo daqueles olhos escuros. "Quanta informação preciosas sobre ti, senhorita Bruno. Descobri em poucas horas que és filha de um antigo mineiro apaixonado por Debussy, que não consegues sonhar e odeia mosquitos. Por que, eu me pergunto. O que te fizeram aquelas pobres criaturas? "O escárnio era evidente em sua voz.
"Pobres nada", respondi prontamente. "Elas são parasitas, se alimentam do sangue dos outros. São insetos inúteis, ao contrário das abelhas e nem são tão simpáticas como as moscas".
Ele bateu a mão sobre a coxa, explodindo de rir. "Simpáticas, as moscas? És muito estranha Melisande e muito, muito engraçada. "
Mais caprichoso que o tempo de março, o seu humor mudou bruscamente. O riso se apagou em um acesso de tosse e voltou a fixar-me. "Os mosquitos sugam sangue porque não têm outra escolha, minha cara. É a sua única fonte de sustento, podes culpá-los? Eles têm gostos refinados, ao contrário das muitas moscas decantadas, acostumadas a viver entre os dejetos humanos".
Fixei a prateleira de mesa cheia de papéis, desconfortável sob seus olhos frios.
"O que farias no lugar de um mosquito, Melisande? Tu ias renunciar a nutrir-te? Morrerias de fome para não ser rotulada como um parasita? "Seu tom era de pressão, como se exigisse uma resposta.
Eu o satisfiz. "Provavelmente não. Mas não tenho certeza. Eu devia estar no lugar de um mosquito, para ter certeza. Gosto de acreditar que poderia encontrar uma "alternativa". Mantive o olhar cuidadosamente separado dele.
"Nem sempre há alternativas, Melisande". Por um momento, sua voz tremeu, sob o fardo de um sofrimento que eu não tinha idéia, com o qual ia chegava ao fim em partes todos os dias por longos quinze anos. "Nós nos veremos as duas, senhorita Bruno. Seja pontual ".
Quando me voltei para ele, ele já havia rodado a cadeira de rodas, escondendo o rosto.
A consciência de ter cometido uma gafe esmagou meu coração como uma mordida, mas não podia remediar isso de forma alguma.
Em silêncio, deixei o quarto.

Capítulo terceiro






Às duas horas, pontual, me apresentei no escritório. Kyle estava saindo, uma bandeja ainda intacta entre as mãos, o ar de quem quer largar tudo e ir para o outro lado do mundo.
"Está de péssimo humor e não quer comer nada", murmurou.
O pensamento de ser a causa involuntária de seu estado de espírito me atingiu profundamente em cada fibra do meu ser, em cada célula. Eu nunca tinha feito mal à ninguém, andando quase na ponta dos pés para não incomodar, atenta a cada palavra para não machucar.
Eu ultrapassei o limiar, uma mão apoiada no batente da porta deixada aberta por Kyle. Na minha entrada, seus olhos se ergueram. "Ah, és tu. Entra, senhorita Bruno. Vem, por favor ".
Não perdi tempo a obedecer.
Empurrou na escrivaninha das folhas cobertas por uma sutil caligrafia masculina. "Envia estas cartas. Uma para o diretor do meu banco e a outra para os endereços indicados na parte inferior".
"Imediatamente, Sr. Mc Laine", respondi com deferência.
Quando levantei os olhos sobre o seu rosto, notei com alegria que o sorriso dele tinha voltado.
"Como somos formais, senhorita Bruno. Não há pressa. Não são cartas tão importantes. Não é questão de vida ou morte. Sou um morto vivo afinal há muitos anos ".
Apesar da crueza de sua declaração, parecia estar de volta com bom humor. Seu sorriso era contagioso e aqueceu meu ânimo em lágrimas. Por sorte, nunca ficava emburrado por muito tempo, mesmo se sua raiva era arrasadora e violenta.
"Sabes dirigir, Melisande? Devo mandá-la pegar alguns livros na biblioteca local. Sabes, pesquisas." O sorriso foi substituído por uma careta. "Claro que não posso ir", acrescentou, para se explicar.
Embaraçado, arrumou as folhas entre as mãos, arriscando a separá-las. "Não tenho licença, senhor", pedi desculpas.
A surpresa alterou seu belo alinhamento. "Eu pensei que a juventude de hoje estava com pressa de crescer exclusivamente para ter o direito de conduzir. Tanto já o fazem antes, escondidos."
"Eu sou diferente, senhor", disse laconicamente. E eu era de verdade. Quase alienada na minha diversidade.
Ele me examinou com os olhos negros, mais perfurantes que um radar. Sustentei seu olhar, inventando uma desculpa plausível.
"Eu tenho medo de conduzir e com tal premissa, acabaria causando desastres", expliquei rapidamente, suavizando as rugas das folhas que eu mesma tinha amassado.
"Depois de tanta sinceridade de tua parte, sinto cheiro de mentira", cantarolou.
"É a verdade. Eu podia realmente... "Perdi a voz por um longo instante, depois voltei. "Eu podia realmente matar alguém".
"A morte é o mal menor", ele sussurrou. Abaixou os olhos para suas pernas e contraiu a mandíbula.
Eu me maldisse mentalmente. De novo. Eu era realmente uma desastrada, mesmo sem um volante entre os dedos. Um perigo público, imperdoavelmente insensível, capaz somente de cometer gafes.
"Eu talvez o ofendi, Sr. Mc Laine?" A ansiedade vazou na minha pergunta e o despertou de seu torpor.
"Melisande Bruno, uma jovem que veio sabe lá de onde, desastrada e divertida como um desenho animado... Como essa garota podia ofender o grande escritor de horror, o satânico e perverso Sebastian Mc Laine?" Sua voz era plana, em contraste com a dureza de suas frases.
Apertei as mãos, nervosa como no primeiro encontro. "Tem razão, senhor. Eu não sou ninguém. E... "
Seus olhos diminuíram, ameaçadores. "De fato. Tu não és ninguém. Tu és Melisande Bruno. Assim é alguém. Nunca permita que alguém a humilhe, nem mesmo eu."
"Eu devia aprender a ficar calada. Antes de chegar a esta casa, eu conseguia fazer isso bem", murmurei triste, com a cabeça inclinada.
"A rosa da meia-noite tem o poder de tirar o pior de ti, Melisande Bruno? Ou eu, o subscrito, tenho essa capacidade incrível? "Ele me dirigiu um sorriso benevolente, com a magnanimidade de um soberano.
Aceitei feliz aquela oferta silenciosa de paz e reencontrei o sorriso. "Acho que depende do senhor", revelei em voz baixa, como se eu confessasse um pecado capital.
"Eu já sabia que era um demônio", disse solene. "Mas até este ponto? Assim me deixas sem palavras... "

"Se quiseres, te passo o vocabulário", disse rindo. A atmosfera ficou mais leve e também meu coração.
"Eu acho que o verdadeiro diabo és tu, Melisande Bruno", ele continuou a me provocar. "És Satanás em pessoa a enviá-lo para perturbar a minha tranquilidade".
"Tranquilidade? É certo de não confundi-lo com o tédio? " brinquei.
"Se eu fosse, contigo aqui, não vou mais senti-lo, isto é certo. Talvez, a este passo, acabarei por me arrepender", disse ele com ênfase.
Estávamos rindo ambos, no mesmo comprimento de onda quando alguém bateu na porta. Três vezes.
"A Sra. Mc Millian", ele antecipou, sem desviar o olhar do meu rosto.
Eu o fiz, relutantemente para receber a governanta.
"Chegou o Dr. Mc Intosh, senhor", disse a boa mulher com um pouco de ansiedade na voz.
O escritor se fechou instantaneamente. "Já é terça-feira?"
"Absolutamente, senhor. Quer que o deixe acomodado em seu quarto? "Ela perguntou ela, cuidadosa.
"Tudo bem. Chame Kyle", ele ordenou, o tom seco como um quintal de poeira. Dirigiu-se a mim, ainda mais seco. "Até mais tarde, senhorita Bruno".
Segui a governanta pelas escadas. Ela respondeu à minha pergunta sem expressão. "O Dr. Mc Intosh é o médico local. Todas as terças-feiras visita o Sr. Mc Laine. Além da paralisia, é tão saudável como um peixe, mas é um hábito e também uma prudência ".
"A sua..." Hesitei, indecisa na escolha da palavra. "... a condição é irreversível?"
"Infelizmente, sim, nenhuma esperança" foi sua triste confirmação.
Ao pé da escada, um homem esperava, a balançar a pasta com os instrumentos.
"Então, Millicent? Tinhas esquecido de novo a visita? "O homem piscou os olhos, procurando minha cumplicidade. "Ela é a nova secretária, certo? Caberá a ela lembrar seus próximos compromissos. Todas as terças-feiras, às três da tarde. " Ele me estendeu a mão com um sorriso amigável. "Eu sou o médico que o acompanha. John McIntosh ".
Era um homem alto, quase como Kyle, mas mais velho, talvez entre sessenta e setenta anos.
"E eu sou Melisande Bruno", eu disse, respondendo ao aperto de mão.



"Um nome exótico para uma beleza digna de mulheres escocesas". A admiração em seus olhos era eloquente. Sorri com gratidão. Antes de chegar na aldeia nem mesmo marcado nos mapas, eu era considerada bonita, no mais graciosa, na maioria das vezes apenas passável. Nunca bonita.
A senhora Mc Millian se iluminou com aquele elogio, como se ela fosse minha mãe e eu era a filha a cuidar. Felizmente, o médico estava idoso e casado, a julgar pela grande aliança no dedo anular, ou ela dada a preparar um belo casamento, na moldura idílica de Midnight Rose.
Depois de tê-lo acompanhado até em cima, voltou para mim, uma expressão brincalhona no seu rosto magro. "É uma pena que seja casado. Seria um partido excelente para a senhorita. "
Que pena que seja velho, eu gostaria de adicionar. Calei-me a tempo de me lembrar que Mc Millian tinha ao menos cinquenta anos e provavelmente achava o médico atraente e desejável.
"Não procuro namorados", lembrei a ela com firmeza. "Espero que não queiras me casar também Kyle".
Ela negou com a cabeça. "Ele também é casado. Isto é ... É separado, caso raro aqui. Enfim, não gosto dele. Há algo nele perturbador e lascivo. "
Eu ia argumentar que o potencial que ele devia gostar antes de tudo de mim, depois desisti. Especialmente, porque Kyle também não gostava de mim também. Não era exatamente o tipo de homem que eu gostaria de sonhar, se fosse capaz. Não, eu era injusta. A verdade era que, depois de conhecer o enigmático e complicado Sebastian Mc Laine, era difícil encontrar alguém à sua altura. Eu me chamei mentalmente de estúpida. Patético e banal cair na rede tecida pelo belo escritor. Ele era apenas meu empregador e eu não queria acabar como milhões de outras secretárias apaixonadas sem esperança de seus chefes. Cadeira de rodas ou não, Sebastian Mc Laine estava fora do meu alcance.
Inquestionavelmente.
"Vou subir", eu disse. "Com que frequência suas visitas duram?"
A governanta riu alegremente. "Mais do que o Sr. Mc Laine possa resistir". Ela começou a contar uma série de histórias com tema envolvendo exames médicos. Eu as parei ao nascer, com a firme convicção de que, se eu não tivesse feito isso a tempo, eu ainda estaria lá, ouvindo ininterruptamente, até a próxima terça-feira.

Eu estava no patamar, meus passos amortecidos pelos tapetes macios, quando vi Kyle sair de um quarto. Pareceu-me ter sido do nosso comum empregador.
Ele me notou e piscou de forma confidencial. Fiquei quieta, decidi não lhe dar corda. A Sra. Mc Millian tinha razão, pensei enquanto me alcançava. Havia algo profundamente perturbador nele.
"Toda terça-feira, a mesma história. Gostaria que Mc Intosh parasse com essas visitas inúteis. O resultado é sempre o mesmo. Assim que ele vai embora, eu é que sofro de mau humor de sua assistência ". Seu sorriso aumentou. "E tu".
Eu dei de ombros. "É nosso trabalho, não é? Somos pagos também por isso? "
"Talvez não seja o suficiente. É realmente insuportável ". Seu tom era tão desagradável a me deixar chocada. Eu não tinha certeza de que era a franqueza típica das pessoas do lugar, genuína em seus julgamentos implacáveis. Havia mais por trás disso, como um tipo de inveja para quem poderia se permitir de não trabalhar, se não por hobby, como Mc Laine. Inveja dele, mesmo se relegado a uma cadeira de rodas, mais aprisionado do que um condenado.
"Não deverias falar assim", eu disse, baixando a voz. "E se te ouvisse?"
"Não é fácil encontrar pessoal por estes lados. Seria difícil substituir-me". Disse isso como um dado de fato, condescendente, como se estivesse fazendo um favor. As palavras eram idênticas àquelas de Mc Laine e percebi sua verdade intrínseca.
"Aqui não há oportunidades de diversão", continuou, o tom mais insinuante agora. Casualmente, ao menos na aparência, me afastou um cacho de cabelos na minha testa. Instantaneamente, recuei, irritada por sua respiração quente no rosto.
"Talvez da próxima vez que eu te tocar, apreciarás mais", disse ele, não ofendido.
A segurança com a qual ele falou desencadeou a minha fúria subterrânea. "Não haverá uma próxima vez", murmurei. "Não procuro distrações, certamente não desse tipo".
"Claro, claro. Por enquanto. "
Permaneci firmemente silenciosa, tanto quanto gostaria de dar um chute nas canelas ou uma bofetada naquele rosto desagradável.
Caminhei pelo corredor, ignorando seu riso reprimido.
Estava já a abrir a porta do meu quarto, quando aquela de Mc Laine foi escancarada e pude ouvir claramente a sua voz, não mais sufocada.
"Fora desta casa, Mc Intosh! E se realmente queres me fazer um favor, não volta mais ".
A resposta do médico foi calma, como se fosse habituado a aqueles picos de raiva.
"Eu voltarei terça-feira na mesma hora, Sebastian. Ah, estou feliz em encontrar-te saudável como um peixe. O tua aparência e o teu corpo podem rivalizar com aqueles de um de 20 anos de idade ".
"Que boa notícia, Mc Intosh". A voz do outro era cortante de ironia. "Vou sair logo para celebrar. Quem sabe também dou um pulo para dançar. "
O médico fechou a porta sem responder. Virando-se para me ver, ele acenou com um sorriso cansado. "Irás te acostumar com o seu humor bailarino. É amável quando quer. Ou seja, muito raramente.
Eu corri em defesa de meu chefe, lealmente. "Qualquer um em seu lugar ..."
Mc Intosh continuou a sorrir. "Não ninguém. Cada um reage ao seu modo, senhorita. Tenha isso bem em mente. Após quinze anos ele devia ao menos se conformar. Mas temo que Sebastian não conheça o significado desta palavra. É assim... "Ele teve uma pequena hesitação. "... passional. No sentido mais amplo da palavra. É impetuoso, vulcânico, teimoso. Uma tragédia terrível que aconteceu com ele ". Ele balançou a cabeça, como se os desenhos divinos lhe parecessem inexplicáveis, então me cumprimentou brevemente e saiu.
Naquele momento, eu não sabia o que fazer. Olhei para a porta do meu quarto. Irradiava uma tal doçura a deixar-me atordoada. Eu tinha medo de enfrentar Mc Laine após sua recente raiva. Mesmo se não tenha sido dirigido a mim. Mais uma vez não fui eu a decidir.
"Senhorita Bruno! Venha aqui agora! "
Para superar aquela espessa porta de carvalho, ela teve que gritar fortemente. Isso foi demais para meus nervos já abalados. Abri a porta, os pés se moveram por força da inércia.
Foi a primeira vez que entrei no seu quarto, mas os móveis me deixaram indiferente. Meus olhos foram instantaneamente presos na figura deitada na cama.
"Onde está Kyle?", me perguntou bruscamente. "É o ser mais indolente que já conheci".
"Eu vou procurá-lo", me ofereci, feliz por ter uma desculpa plausível para escapar rapidamente daquela sala, daquele homem, daquele momento.
Ele me atordoou com a força de seu olhar frio. "Depois. Agora entre. "
De alguma forma, o terror que senti passou, o tempo suficiente para fazer-me entrar no seu quarto com a cabeça erguida.
"Posso fazer algo por ti?"
"E o que podia fazer?" Um tremor de ironia surgiu nos seus lábios carnudos. "Dar-me as suas pernas? Farias isso, Melisande Bruno? Se fosse possível? Quanto valem as suas pernas? Um milhão, dois milhões, três milhões de libras?"
"Eu nunca faria isso por dinheiro", eu respondi rapidamente.
"Ele apoiou-se sobre os cotovelos e me olhou fixo. "E por amor? Farias isso por amor, Melisande Bruno?"
Ele estava a brincar comigo, como de costume, eu disse a mim mesma. No entanto, por alguns instantes, tive a impressão de que rajadas de vento invisíveis estavam a me empurrar para seus braços. Aquele momento de loucura momentânea passou e eu me recuperei, lembrando que eu tinha a minha frente um desconhecido, não o príncipe brilhante de armadura brilhante que eu nem podia sonhar. E certamente não um homem que podia se apaixonar por mim. Em circunstâncias normais, eu nunca teria estado lá naquela sala, a compartilhar o momento mais íntimo de uma pessoa. Aquele em que ele está sem máscaras, despido de qualquer defesa, desnudo de toda formalidade imposta pelo mundo exterior.
"Eu nunca amei, senhor", falei pensativa. "Então ignoro o que eu faria nesse caso. Eu me sacrificaria a tal ponto pela pessoa amada? Não sei. Realmente. "
Seus olhos não me deixaram como se não fossem capazes de fazê-lo. Ou talvez era eu que imaginava isso, porque era o que senti naquele momento.
"É uma pergunta puramente acadêmica, Melisande. Pense que se tu estivesses realmente apaixonada por alguém... Daria as tuas pernas ou a tua alma? "A sua expressão era indecifrável.
"O senhor faria isso?"
A este ponto, riu. Uma risada que ecoou no quarto, inesperada e fresca como o vento da primavera.
"Eu o faria, Melisande. Talvez porque amei e sei o que se sente". Ele olhou para o meu ombro, como se estivesse a esperar alguma pergunta minha, mas não fiz nenhuma. Eu não sabia o que dizer. Ele podia falar sobre vinhos ou astronomia, o resultado teria sido idêntico. Eu não conseguia discernir o assunto amor. Porque, de fato, não tinha idéia do que era.
"Aproxima a cadeira de rodas", ele disse finalmente, em tom de comando.
Contente em cumprir uma tarefa à qual eu estava preparada, obedeci. Seus braços estavam tensos no esforço e escorregou com uma habilidade consumada sobre o seu instrumento de tortura. Tão odiado quanto necessário e valioso.
"Eu entendo o que sente", disse num impulso, movida pela compaixão.
Ele olhou para mim. Uma veia pulsava na têmpora direita, inquieta pelo meu comentário.
"Não tens idéia de como me sinto", disse ele lapidário. "Eu sou diferente. Diferente, entendeste? "
"Eu sou assim desde o nascimento, senhor. Posso compreender, acredite em mim ", me defendi, com voz fraca.
Ele tentou cruzar o meu olhar, mas me recusei.
Bateram à porta e acolhi com alívio a chegada de Kyle, a expressão vazia.
"O senhor precisa de mim, Sr. Mc Laine?"
O escritor teve um momento de cólera. "Onde estavas escondido, seu descansado?"
Houve um lampejo de revolta nos olhos do enfermeiro que porém não fez nenhum comentário.
"Espera-me no estúdio, senhorita Bruno", disse Mc Laine, com a voz ainda tremendo de violência reprimida.
Não olhei para trás quando saí.

Capítulo quarto






Vários dias se passaram antes de voltar a encontrar aquela alquimia inicial, e posteriormente perdida, com o proprietário de Midnight Rose.
Evitei Kyle como a peste, de modo que ele não tivesse a menor esperança. Seus olhos cheios de cobiça sempre procuraram capturar os meus, nas vezes em que nos vimos. Mas eu o mantive a devida distância com a esperança de que bastaria dissuadi-lo ao tentar novas e desagradáveis abordagens.
Por outro lado, comecei a apreciar a companhia da Sra. Mc Millian. Ele era uma mulher perspicaz, nem um pouco bisbilhoteira, como eu a tinha julgado à primeira vista. Era profundamente leal em relação à Mc Laine e essa qualidade nos aproximou muitíssimo. Eu desenvolvia as minhas tarefas com apaixonada diligência, feliz em poder transferir, ao menos em parte, o peso das costas dele para as minhas. Faltavam-me as nossas discussões, o meu coração ameaçou explodir quando eles começaram de novo.
Inesperados, como tinham começado.
"Maldição!"
Levantei de uma vez a minha cabeça, inclinada sobre alguns documentos que eu estava a reordenar. Estava com os olhos fechados e uma expressão tão vulnerável no rosto de um menino que eu fiquei enternecida.
"Tudo bem?"
Seu olhar estava muito frio, e quase não gostei que tivesse reaberto os olhos.
"É o meu maldito editor", ele explicou, agitando uma folha. Era uma carta que tinha chegado com o correio da manhã à qual não tinha notado. Era eu a dividir a correspondência e lamentei não tê-la dado antes. Talvez ele estivesse bravo comigo por ter ignorado uma correspondência importante. Suas últimas palavras revelaram porém o contrário.
"Eu queria que esta carta tivesse sido perdida no caminho", disse com desgosto. "Pretende que lhe envie o resto do manuscrito".
Meu silêncio parecia alimentar sua fúria. "E eu não tenho outros capítulos para enviar".
"Há dias que eu o vejo escrevendo", arrisquei perplexa.



"Há dias que escrevo porcarias, dignas de acabar onde acabaram", disse, indicando a lareira.
Eu tinha notado que o fogo havia sido aceso no dia anterior, e fiquei espantada, considerando as temperaturas de verão, mas não tinha perguntado por explicações.
"Tente ouvir o seu editor. Quer que eu lhe telefone? " sugeri rapidamente. "Tenho certeza que vai entender..."
Ele me interrompeu, agitando sua mão bruscamente, como se estivesse tentando pegar uma mosca indesejável. "Vai entender o que? Que estou em crise criativa? Que estou vivendo o clássico bloqueio do escritor? "Seu sorriso zombeteiro fez meu coração palpitar como se o tivesse acariciado.
Jogou a carta na escrivaninha. "O livro não vai em frente. Pela primeira vez na minha carreira, parece que não tenho mais nada para escrever, que esgotou minha veia ".
"Então faça outra coisa", disse impulsivamente.
Ele olhou para mim como se eu tivesse perdido o juízo. "Como?"
"Conceda-se uma pausa, só para entender o que está a acontecer", expliquei freneticamente.
"Fazendo o quê? Um pouco de corrida? Um passeio de carro? Ou uma partida de tênis? "O sarcasmo em sua voz era tão cortante a ponto de dilacerar-me. Parecia quase sentir o calor pegajoso do sangue fluir das feridas.
"Não há só passatempos físicos", eu disse, inclinando a cabeça. "`Podia ouvir um pouco de música, talvez. Ou ler".
Agora, ele me teria liquidado com uma piscada de olho, como aquela que havia sugerido o pior disparate cumulativo na história. Em vez disso, seus olhos eram atentos, concentrados em mim.
"Música. Não é uma má idéia. Tanto, não tenho muito o que fazer, não? "Ele apontou para um toca-discos na prateleira superior da biblioteca. "Pegue-o, por favor".
Subi na cadeira e o peguei, admirando os detalhes ao mesmo tempo. "É maravilhoso. Original, não é? "
Ele consentiu, enquanto eu o colocava sobre a escrivaninha. "Sempre fui apaixonado por coisas antigas, embora este seja mais moderno. Na caixa vermelha, encontrarás os discos de vinil ".
Parei na frente da estante de livros, os braços inertes ao longo dos quadris. Havia duas caixas escuras de tamanho semelhante na mesma prateleira em que estava antes o toca-discos. Passei a língua sobre os lábios secos, a garganta árida.
Ele me chamou impaciente. "Mexa-se, senhorita Bruno. Eu sei que não vou a lugar nenhum, mas isso não justifica sua lentidão. O quê? Uma tartaruga? Ou foi a lição de Kyle? "
Eu nunca ia me acostumar ao seu sarcasmo, pensei com raiva, quando tomei uma decisão apressada. Era o momento: confessar minha anomalia aberrante ou de seguir da maneira mais fácil, como no passado? Ou seja, pegar uma caixa ao acaso e esperar que fosse a certa? Não podia abri-la primeiro e espiar o conteúdo, estavam fechadas com grandes pedaços de fita adesiva. Ao pensar nas piadas aterrorizantes da qual eu seria objeto se tivesse dito a verdade, eu me decidi. Levantei-me na cadeira e puxei uma caixa. Coloquei-a sobre a mesa sem olhar para ele.
Eu o ouvi respirando, em silêncio. Surpreendentemente, era aquela certa. E voltei a respirar.
"Aqui está." Deu-me um disco. Debussy.
"Por que ele?", perguntei.
"Porque eu reavaliei Debussy desde que eu sei que seu nome foi escolhido como uma homenagem a ele".
A simplicidade primitiva de sua resposta me deixou sem fôlego, o coração que se torcia entre esperanças afiadas como espinhos. Porque eram muito boas para realmente se acreditar.
Eu não sabia sonhar. Talvez porque minha mente já tivesse percebido ao nascer o que meu coração se recusava a fazer. Ou seja, os sonhos nunca se tornam realidade. Não os meus, ao menos.
A música tomou corpo e invadiu o quarto. Antes gentilmente, então com mais vigor, em um crescendo emocionante e sedutor.
Mc Laine fechou os olhos e recostou-se na cadeira, absorvendo o ritmo, fazendo-o seu, apropriando-se em um furto autorizado.
Olhei para ele, aproveitando o fato de que ele não podia me ver. Naquele momento, senti-me tremendamente jovem e frágil, como se uma mera rajada de vento pudesse levá-lo embora. Fechei também os olhos com aquele pensamento escandaloso e ridículo. Ele não era meu. Nunca teria sido. Cadeira de rodas ou não. Antes que eu o percebesse, primeiro encontraria meu bom senso, a minha resignação reconfortante, o meu equilíbrio mental. Eu não pude pôr em perigo a gaiola que eu me tinha deliberadamente trancado, arriscando sofrer atrozmente por uma fantasia simples, um sonho irreal digno de uma adolescente.




A música cessou, quente e inebriante.
Abrimos os olhos novamente ao mesmo tempo. Os seus tinham retomado a frieza habitual. Os meus apagados, sonolentos.
"O livro assim não vai em frente", ele decretou. "Desligue o toca-discos, Melisande. Gostaria de escrever um pouco, aliás, reescrever tudo. "
Dirigiu-me um sorriso brilhante. "A idéia da música foi genial. Obrigado. "
"Mas, de nada... Eu não fiz nada de especial" gaguejei, escapando do seu olhar, até as profundezas em que eu estava constantemente me perdendo.
"Não, não fizeste nada de especial, de fato", ele admitiu, deixando minha moral descer sob os pés, para o mundo rápido com o qual tinha me liquidado. "Tu és especial, Melisande. Tu, não o que diz ou o que faz".
Seu olhar encontrou-se com o meu, decidido a capturá-lo como de costume. Ele ergueu as sobrancelhas, com aquela ironia que eu conhecia tão bem agora.
"Obrigado, senhor", respondi imediatamente.
Ele riu, como se eu tivesse dito uma piada. Não considerei isso. Ele me achava engraçada. Melhor que nada, talvez. Eu voltei à conversa de alguns dias antes, quando ele me perguntou se por amor eu teria cedido as minhas pernas ou a minha alma. Então eu respondi que nunca tinha amado, então ignorava como eu me ia me comportar. Agora eu percebia que talvez eu pudesse responder a essa pergunta insidiosa.
Ele puxou o computador para si e começou a escrever, me exclui do mundo dele. Voltei às minhas tarefas, apesar de ter meu coração em fibrilação. Apaixonar-se por Sebastian Mc Laine era um suicídio. E eu não tinha vocação para kamikaze. Certo? Eu era uma garota de bom senso, prática, racional, incapaz de sonhar. Mesmo de olhos abertos. Ou, ao menos, eu tinha sido até esse momento, corrigi-me.
"Melisande?"
"Sim, senhor?" Eu me virei para ele, surpresa por ele ter falado comigo. Quando ele começou a escrever, ele se afastava de tudo e de todos.
"Eu quero rosas", ele disse, apontando para o vaso vazio na mesa. Peça a Millicent para enchê-lo, por favor.
"Certo, senhor". Peguei o vaso de cerâmica com as duas mãos. Eu sabia o quão pesado era.

"Rosas vermelhas" especificou. "Como os seus cabelos".
Eu fiquei vermelha, embora não houvesse nada de romântico naquilo que havia dito.
"Está bem, senhor."
Senti seu olhar atravessar-me as costas, enquanto abria a porta com cautela e saía no corredor. Desci ao piso térreo, o vaso apertado nas minhas mãos.
"Sra. Mc Millian? Senhora? Não havia nenhum vestígio da governanta idosa e então uma memória veio à minha mente, muito pequena para agarrá-la. A mulher, no pequeno almoço havia dito a respeito do dia de folga... Ela se referia a hoje? É difícil estabelecer isso. A Mc Millian era uma fonte confusa de informações, e raramente eu conseguia ouvi-la do início ao fim. Mesmo na cozinha não havia vestígio dela. Desconsolada, apoiei o vaso sobre a mesa, ao lado de um cesto de frutas frescas.
Esplêndido. Percebi que tinha que ser eu a pegar as rosas no jardim. Uma tarefa além das minhas capacidades. Mais fácil tocar uma nuvem e dançar em uma valsa.
Com um ruído insistente nos ouvidos e a sensação de uma catástrofe iminente, fui ao ar livre. A roseira estava na minha frente, ardente como um fogo de pétalas. Vermelhas, amarelas, rosas, brancas, até mesmo azuis. Pena que eu vivia em preto e branco, num mundo onde tudo era sombra. Em um mundo onde a luz era algo inexplicável, algo indefinido, proibido. Não consegui nem sonhar em distinguir as cores porque não sabia o que eram. Desde o nascimento.
Movi um passo incerto até a roseira, o rosto em chamas. Eu tive que inventar uma desculpa para justificar o meu retorno sem flores. Uma coisa era escolher entre duas caixas, outra era levar rosas da mesma cor. Vermelhas. Como é o vermelho? Como imaginar algo que nunca vimos, nem mesmo em um livro?
Pisoteei uma rosa partida. Inclinei-me para recolhê-la, estava morta, lânguido na sua morte vegetal, mas ainda exalava perfume.
"O que estás a fazer aqui?"
Afastei o cabelo da minha testa, arrependida de não tê-los prendido em um coque. Eles estavam longos na nuca, e já estavam molhados de suor.
"Eu tenho que pegar rosas para o Sr. Mc Laine", respondi lacónica.
Kyle sorriu para mim, o habitual sorriso cheio de outras intenções irritantes. "Precisas de ajuda?"
Naquelas palavras lançadas ao vento, vazias e ambíguas, encontrei uma maneira de escapar, um atalho inexplorado, para pegar sem pensar.
"Na realidade, tu deverias fazê-lo, mas não estavas por perto. Como sempre, "eu disse ácida.
Um arrepio atravessou seu rosto. "Eu não sou um jardineiro. Trabalho até demais ".
Esta declaração me fez rir. Levei uma mão à boca, como se para amortecer a hilaridade.
Ele me olhou furiosamente. "É a verdade. Quem tu achas que o ajuda a lavar-se, vestir-se, a mover-se?"
O pensamento de Sebastian Mc Laine nu quase me causou um curto-circuito. Lavá-lo, vesti-lo... Tarefas que eu teria feito com muito prazer. O pensamento seguinte, isto é, que nunca caberia a mim, me fez responder com acidez.
"Mas, na maior parte do dia, estás livre. Claro, à sua disposição, no entanto, raramente és perturbado" aumentei a dose. "Vamos, vem me ajudar."
Ele decidiu, ainda irritado. Agarrei as tesouras, sorrindo. "Rosas vermelhas", eu disse.
"Será feito" resmungou, começando a trabalhar.
No final, quando o maço ficou pronto, fui à cozinha onde pegamos o vaso. Parecia mais prático e fácil dividir a tarefa. Ele traria o vaso de cerâmica, eu as flores.
Mc Laine ainda estava a escrevendo, fervorosamente. Só se interrompeu quando nos viu voltar juntos.
"Agora eu entendo por que demoraram tanto" sibilou à minha entrada.
Kyle se afastou, colocando o vaso na mesa de má vontade. Por um momento, temi que ele caísse. Ele já havia saído quando me dispus a arrumar as rosas no vaso.
"Foi uma tarefa tão difícil que precisou da ajuda dele?" perguntou, seus olhos que irradiavam raios de raiva incontrolável.
Eu me afoguei, como um peixe que estupidamente pegou a isca. "O frasco estava pesado", me justifiquei. "Na próxima vez, não vou chamá-lo".
"Muito sábio". Sua voz era enganosamente angélica. Na verdade, com um rosto sombrio com uma barba de dois dias, ele parecia um demônio maligno, que foi levado diretamente do submundo para me oprimir.
"Não encontrei a senhora Mc Millian", insisti. Um peixe que ainda se agarra à isca, que ainda não percebeu que se trata de um amo.
"Ah, sim, é o dia de folga dela" admitiu ele. Mas então sua raiva reapareceu, apenas temporariamente estabelecida. "Eu não quero histórias de amor entre meus funcionários".
"Não me tinha passado pela cabeça!" disse com ímpeto, com tanta sinceridade capaz de ganhar um sorriso de aprovação de sua parte.
"Disso eu compartilho". Seus olhos estavam congelados apesar do sorriso. "Claro que isso não vale para mim. Não tenho nada contra ter histórias com os funcionários, eu". Ele premeu nas palavras, como para reforçar a brincadeira.
Pela primeira vez, tive vontade de dar-lhe um soco, e percebi que não seria a primeira vez. Não livre de me desafogar sobre quem eu queria, minhas mãos premeram mais forte sobre o maço, esquecida dos espinhos. A dor me surpreendeu, como se eu estivesse imune aos espinhos, enquanto estava ocupada lutando contra outros.
"Ahi!" Eu retirei de repente a mão.
"Te furaste?"
Meu olhar foi mais eloquente do que qualquer resposta. Ele estendeu a sua mão, a procurar a minha.
"Deixa-me ver".
Fiz isso, como um autômato. A gota de sangue se destacou na pele branca. Escura, preta para meus olhos anormais. Vermelha carmim para aqueles normais.
Tentei retirar a mão, mas seu aperto era férreo. Eu o observei, desconcertada. Seu olhar não abandonava meu dedo, como sequestrado, hipnotizado. Então, como de costume, tudo acabou. Sua expressão mudou ao ponto de não teria sabido decifrá-la. Pareceu nauseado e desviou o olhar com pressa e fúria. Minha mão foi deixada livre, e coloquei meu dedo na boca para sugar o sangue.
Sua cabeça voltou-se novamente na minha direção, como se conduzida por uma força irrefreável e pouco apreciada. Sua expressão era agonizante, de sofrimento. Por um momento, no entanto. Incrível e ilógico.
"O livro vai bem. Eu encontrei a minha veia ", ele disse, como se respondesse à uma minha pergunta nunca feita. "Tu te importas de me trazer uma xícara de chá?"
Eu me agarrei às suas palavras, como uma corda jogada para um náufrago. "Eu vou logo".



"Tu podes fazer isso sozinha, desta vez?" Sua ironia foi quase agradável, após o olhar assustador de antes.
"Vou tentar", eu disse, entrando no jogo.
Desta vez, não conheci Kyle e foi um alívio. Me movi para a cozinha com maior segurança no jardim. Consumindo todas as refeições lá, na companhia da Sra. Mc Millian, aprendi todos os seus esconderijos. Encontrei facilmente a chaleira no suporte da parede ao lado da geladeira e os saquinhos de chá numa lata, do outro. Subi ao andar de cima, a bandeja nas mãos.
Mc Laine não olhou para cima quando me viu entrar. Evidentemente, suas orelhas, como antenas de radar, já tinham capturado que eu estava sozinha.
"Eu trouxe açúcar e mel, sem saber como prefere bebê-lo. E também leite ".
Ele sorriu, olhando a bandeja. "Não estava muito pesada para ti?"
"Eu dei um jeito" disse com dignidade. Defender-me de suas piadas verbais estava se tornando um hábito irrenunciável, certamente preferível à trágica expressão de alguns minutos antes.
"Senhor ..." tinha chegado a hora de abordar uma questão importante.
Ele me deu um sorriso cheio de sincera benevolência, como um monarca bem disposto em relação a um súdito leal. "Sim, Melisande Bruno?"
"Eu gostaria de saber qual será o meu dia livre", disse com um suspiro, intrépida.
Ele abriu os braços e se estirou, voluptuosamente, antes de responder. "Dia livre? Tu nem mal chegastes e queres te livrar de mim?"
Eu passei o peso de um pé para o outro enquanto o olhava derramando uma colher de leite e uma de açúcar no chá, e depois tomá-lo devagar. "Hoje é domingo, senhor. O dia livre da Sra. Mc Millian. E depois de amanhã será exatamente uma semana da minha chegada. Talvez seja o caso de falarmos, senhor. Da sua expressão, parecia que não queria me dar nenhum dia livre.
"Melisande Bruno, estás pensando que eu não quero te dar um dia livre?" perguntou com zombaria, como se tivesse lido na minha mente. Eu já estava achando que não, nunca teria sonhado pensar em uma coisa tão absurda, quando ele acrescentou. "... porque tu terias perfeitamente razão".
"Talvez não tenha entendido bem, senhor. Essa é outra das suas brincadeiras? Eu estava com a voz fina, no esforço para controlá-la.
"E se não fosse?" respondeu, seus olhos insondáveis ​​como o oceano.
Eu o olhei com a boca aberta. "Mas a Sra. Mc Millian ..."
"Kyle também não tem dias livres", ele me lembrou, com um sorriso de graça. Eu tive a aguda sensação de que ele estava se divertindo bastante.
"Ele não tem um tempo fixo como o meu" eu disse chateada. Eu estava com muita vontade de explorar a aldeia e os arredores da casa e me desagradava ter que lutar por um meu direito.
Ele não piscou. "E assim , sempre à minha disposição".
"Então, quando devo sair?" perguntei, levantando a voz. "À noite, talvez? Estou livre do amanhecer ao pôr-do-sol... Em vez de dormir, posso ir por aí? Ao contrário de Kyle, eu vivo aqui, não vou para casa à noite.
"Não te aventures à noite. É perigoso. "
Suas palavras submissas ficaram impressas na minha mente, causando um leve arrepio de fúria. "Estamos em um beco sem saída", eu disse, tão fria quanto a sua voz. "Eu quero visitar a área, mas não me permite um dia livre para fazê-lo. Por outro lado, no entanto, sugere-me ameaçadoramente não sair à noite, dizendo que é perigoso. O que me resta fazer? "
"Tu és ainda mais bela quando te irritas, Melisande Bruno", disse ele com descrença. "A raiva tinge tua face com um rosa delicioso".
Eu desmoronei por um momento delicioso na alegria desse elogio, mas a raiva se sobrepôs. "Então? Vou ter um dia livre? "
Ele sorriu torto e minha fúria caiu, substituída por uma excitação diferente e impensável.
"Ok, vá domingo" concedeu enfim.
"Domingo?" Ele tinha respondido tão rápido a ponto de me atordoar. Ele foi tão rápido em suas decisões que me fez duvidar ser capaz de segui-lo. "Mas também é o dia livre da Sra. Mc Millian ... Tem certeza...?"
"Millicent é livre só pela manhã. Tu podes ter a tarde ".
Assenti com a cabeça, não convencida. Por enquanto, tive que ficar satisfeita. "Tudo bem."
Ela apontou para a bandeja. "Queres levá-la para a cozinha, por favor?"
Eu fui à porta quando um pensamento me pareceu, com o impacto de um meteorito. "Por que domingo?"
Eu me virei para olhar para ele. Ele tinha a expressão de uma cobra chocalhada e entendeu tudo em um instante.



"Porque hoje é domingo, e eu vou ter que esperar sete dias". Uma vitória de Pirro. Fiquei tão furioso que fiquei tentado a golpear a bandeja nele.
"Ela vai se apressar", fiquei divertida. "Oh, não feche a porta, saindo".
Fiquei tentada a fazê-lo, mas fui impedida pela bandeja. Eu deveria ter colocado a bandeja no chão, mas desisti. Provavelmente teria gostado ainda mais.
Naquela noite, pela primeira vez na minha vida, sonhei.

Capítulo quinto






Eu parecia um espírito, quase espectral na minha camisola esvoaçante ao vento invisível. Sebastian Mc Laine me estendia a mão, gentil. "Queres dançar comigo, Melisande Bruno?"
Ele estava parado no pé da minha cama. Sem cadeira de rodas. Sua figura cintilava, desbotada, com a mesma consistência que os sonhos. Preenchi a distância que nos separava, rápida como uma estrela cometa. Ele deu um lindo sorriso, daqueles que não duvida da sua felicidade, porque ele reflete a sua.
"Sr. Mc Laine... O senhor pode andar..." Minha voz era ingênua, parecia com a de uma meninazinha.
Ele devolveu o meu sorriso, seus olhos tristes e escuros. "Ao menos em sonhos, sim. Não queres me chamar Sebastian, Melisande? Ao menos no sonho? "
Fiquei envergonhada, receosa de abandonar as formalidades, mesmo nesse mundo fantástico e irreal.
"Tudo bem ... Sebastian".
Suas mãos me apertaram a cintura, um abraço firme e brincalhão. "Sabes dançar, Melisande?"
"Não".
"Então deixa que eu te guie. Achas que podes fazer isso? " Ele me fixava desconfiado agora.
"Não creio que consigo" admiti sincera.
Ele consentiu, de modo algum perturbado pela minha sinceridade. "Nem mesmo em um sonho?"
"Eu nunca sonho" respondi incrédula. No entanto, eu estava fazendo isso. Foi um fato incontestável, certo? Não podia ser real. Eu estava de camisola em seus braços, a doçura de seu olhar, a ausência de uma cadeira de rodas.
"Espero que não despertes desiludida" ele disse pensativo.
"Por que deveria?" objetei.
"Eu serei o objeto do primeiro sonho da tua vida. Estás desapontada?" me fixava sério, duvidoso.
Ele ia para trás agora e eu coloquei os dedos nos seus braços, ferozes como garras. "Não, fica comigo. Por favor. "



"Tu me queres realmente no teu sonho?"
"Eu não quero nenhum outro" disse sem rodeios. Eu estava sonhando, me repeti. Eu poderia dizer tudo o que me passava pela cabeça, sem medo das consequências.
Ele sorriu novamente, mais bonito do que nunca. Isso me fez rodar, acelerando o ritmo enquanto pouco a pouco eu aprendia os passos. Foi um sonho real de uma maneira assustadora. Meus dedos percebiam, sob os polegares, a suavidade da caxemira de seu suéter e mais em baixo, a força de seus músculos. Em algum momento, ouvi um barulho, como um pêndulo que bate as horas. Dei uma risada. "Até aqui!"
O som do pêndulo não era particularmente agradável para mim, era um som estridente, angustiante e antigo.
Sebastian soltou-se de mim, a testa enrugada. "Eu tenho que ir".
Eu sussurrei, como se fosse atingida por uma bala. "Tens mesmo?"
"Eu devo, Melisande. Os sonhos também terminam". Em suas palavras simples, havia tristeza, do gosto do adeus.
"Vais voltar?" Eu não podia deixá-lo ir sem lutar.
Ele me estudou com cuidado, como sempre fazia durante o dia, na realidade. "Como eu poderia não voltar agora que aprendeu a sonhar?"
Essa promessa poética suavizou meus batimentos cardíacos, já irregular com a idéia de não vê-lo mais. Não assim, ao menos.
O sonho se apagou, como a chama de uma vela. E assim a noite.
A primeira coisa que vi, abrindo meus olhos, foi o teto com vigas expostas. Então a janela, entreaberta por causa do calor.
Eu sonhei pela primeira vez.
Millicent Mc Millian me fez um sorriso gentil quando me viu aparecer na cozinha. "Olá, querida. Dormiu bem? "
"Como nunca na minha vida" disse lacónica. Meu coração arriscava explodir no meu peito, com a memória do protagonista do meu sonho.
"Estou feliz", disse a governanta, sem saber o que eu estava falando. Ela começou uma história detalhada do dia que passou na aldeia. Da missa, do encontro com pessoas cujos nomes não me diziam nada. Como sempre, deixei que falasse, a mente ocupada em fantasias decididamente mais agradáveis, o olho sempre fixo no relógio, na febril expectativa de vê-lo novamente.
Era infantil pensar que seria um dia diferente, que ele se comportaria de forma diferente. Tinha sido um sonho, nada mais. Mas inexperiente como eu era sobre o assunto, me iludia que podia ter uma sequência na realidade.
Quando cheguei ao estúdio, ele estava abrindo cartas com um cortador de prata. Ele levantou de leve o olhar, quando eu surgi.
"Outra carta do meu editor. Desliguei meu celular exatamente para não ter que aguentá-lo! Odeio pessoas sem fantasia ... Eles não tem idéia do mundo de um artista, de seu tempo, de seus espaços ... "Seu tom desgrenhado me levou de volta ao chão. Sem saudação, nenhum reconhecimento especial, sem um olhar doce. Bem-vinda à realidade, me cumprimentei sozinha. Que coisa imaginar o contrário! É por isso que eu nunca tinha sonhado antes. Porque não acreditava, não esperava, não ousava esperar. Eu tive que voltar a ser a Melisande de antes dessa casa, antes desse encontro, de antes da ilusão.
Mas talvez eu sonhe com ele de novo. O pensamento me aqueceu mais que o chá da Sra. Mc Millian ou do sol de cegar além da janela.
"Bem? O que fazes ai parada como uma estátua? Senta, por Deus".
Sentei-me diante dele, dócil, a chamada queimando na pele.
Ele me passou a carta, com ar sério. "Escreva-lhe. Diga que ele terá seu manuscrito na data prevista".
"Tem certeza de que consegue fazer isso? Quero dizer... está reescrevendo tudo... "
Reagi ao que julgou uma crítica. "São minhas pernas que estão paralisadas, não o cérebro. Tive só um momento de crise. Terminou. Definitivamente. "
Mantive um silêncio prudente durante toda a manhã, enquanto o via premer as teclas do computador com energia incomum. Sebastian Mc Laine era fácil de se irritar, lunático e excêntrico. Fácil também de odiar, considerei, estudando-o de forma escondida. E também bonita. Muito e consciente de sê-lo. O que o deixava duplamente detestável. No meu sonho, tinha aparecido um ser inexistente, a projeção dos meus desejos, não um homem real, em carne e osso. O sonho tinha sido mentiroso, estupidamente mentiroso.
A um certo ponto, me indicou as rosas. "Muda as flores, por favor. Detesto vê-las murchar. Eu as quero sempre frescas."
Encontrei a voz. "Faço isso logo".
"E tenha cuidado para não se cortar desta vez". A dureza de seu tom me deixou tonta. Nunca estava preparada adequadamente para os seus surtos frequentes de raiva, carregados de destruição.
Para não correr riscos, peguei o vaso inteiro e desci. A meio caminho, encontrei a governanta que correu para me ajudar. "O que aconteceu?"
"Ele quer rosas novas", expliquei com a respiração curta. "Ele diz que detesta vê-las murchar. "
A mulher levantou os olhos para o céu. "Todos os dias uma nova".
Levamos o vaso para a cozinha e então ela foi buscar frescas, rigorosamente vermelhas. Eu me encolhi numa cadeira, como se estivesse contaminada pela atmosfera lúgubre da casa. Não conseguia tirar da cabeça o sonho daquela noite, em parte porque era o primeiro da minha vida e em mim ainda havia a emoção da descoberta, em parte porque tinha sido tão vívido, dolorosamente vívido. O som do pêndulo me fez saltar. Era tão aterrorizante que eu o tinha percebido também no meu sonho. Talvez tivesse sido esse detalhe a torná-lo tão real.
As lágrimas inundaram meus olhos, irrefreáveis e impotentes. Um soluço escapou da minha garganta, mais forte do que meu infame autocontrole. Foi naquele estado que a governanta me encontrou, ao reentrar na cozinha. "Aqui estão as rosas frescas para o nosso senhor e patrão", disse alegremente. Então ela notou minhas lágrimas e levou as mãos ao peito. "Senhorita Bruno! O que aconteceu? Está mal? Não será pela reprimenda do senhor Mc Laine? Ele é um brincalhão, rabugento como um urso e adorável quando se lembra de sê-lo... Não se preocupe, o que quer que lhe tenha dito, ele já terá esquecido".
"Esse é o problema", eu disse com uma voz de choro, mas ela não ouviu, já dedicada aos seus discursos.
"Vou lhe preparar um chá, irá lhe fazer bem. Lembro-me de uma vez, na casa onde trabalhei primeiro ... "
Suportei em silêncio o seu pesada discurso, apreciando a tentativa fracassada de me distrair. Tomei a bebida quente, fingindo me sentir melhor e recusei a sua oferta de ajuda. Eu levaria as rosas. A mulher insistiu em me acompanhar ao menos até o corredor e em frente à sua gentil tomada de posição, não ousei recusar. Quando voltei ao estúdio, eu era a Melisande de sempre, os olhos secos, o coração em hibernação, a alma resignada.
As horas passaram, pesadas como concreto armado, em um silêncio escuro como o meu humor. Mc Laine me ignorou o tempo todo, dirigindo-me a palavra só quando não podia evitá-la. O desejo espasmódico de chegar ao pôr-do-sol era igual só aquele da manhã para revê-lo. É possível que tenham sido só tão poucas horas?
"Pode ir senhorita Bruno", me disse, sem olhar nos meus olhos.
Limitei-me a lhe desejar uma boa noite, respeitosa e fria como ele.




Eu estava à procura de Kyle, a seu pedido, quando ouvi um soluço vir de baixo da escada. Escancarei os olhos, incerta sobre o que fazer. Após mil hesitações, alcancei a fonte desse barulho e o que vi foi incrível.
O rosto nas sombras, a forma indistinta, preocupado em puxar para cima o nariz, era Kyle. O homem tinha um lenço de papel na mão e parecia só a pálida cópia do sedutor dos dias antes. Eu me limitei a fixá-lo, emudecida pelo espanto.
Ele notou minha presença e deu um passo à frente. "Eu te faço pena? Ou tens vontade de rir?"
Parecia que eu tinha sido pega no ato de espioná-lo, como um guarda indiscreta. Resisti à forte tentação de me justificar.
"O Sr. Mc Laine a procura. Gostaria de ir para o quarto para jantar. Mas ...Tu estás bem? Posso fazer alguma coisa? "
Suas bochechas se encheram de manchas escuras e pensei que estava a corando pelo embaraço.
Deu um passo atrás, também metaforicamente. "Não, desculpe, esqueça o que eu disse. Não faço nada a não ser me meter nos assuntos dos outros ".
Ele negou com a cabeça, excepcionalmente galante. "Tu és muito deliciosa para ser uma intrometida persuasiva, Melisande. Não, eu... Estou apenas chateado com o divórcio ". Só naquele momento percebi que tinha um lenço na mão, como uma folha amarrotada. "Ela se foi. Todos os meus esforços para resgatar a ruptura falharam".
Por um momento tive vontade de rir. Tentativas? E como tinha tentado? Fazendo propostas obscenas para a única mulher jovem nas redondezas?
"Desculpe", disse desconfortavelmente.
"Também para mim". Deu outro passo à frente, saindo da sombra. Seu rosto estava marcado de lágrima a desmentir a má opinião que eu tinha feito dele.
Fiquei incerta ao olhar para ele, com forte embaraço. O que a etiqueta dizia sobre pessoas que vêm de um divórcio? Como consolá-las? O que dizer sem correr o risco de machucá-las? Sim, mas quando a etiqueta foi elaborada, o divórcio nem sequer era admitido.
"Vou dizer ao Sr. Mc Laine que não estás bem", disse.
Ele parecia tomado pelo pânico. "Não, não. Não estou pronto para voltar ao mundo civil e temo que Mc Laine esteja só procurando uma desculpa para me mandar embora definitivamente de Midnight rose. Não, o tempo de me recompor e chego. "



"O tempo de te recompor, claro", eu lhe fiz eco, pouco convencida. Kyle estava realmente com um aspecto terrível, seus cabelos ondulados, seu rosto avermelhado pelas lágrimas, a roupa branca amarrotada, como se tivesse dormido com ela.
"Tudo bem, então. Boa noite", o cumprimentei, desejando só o abrigo do meu quarto. Tinha sido um dia longo, terrivelmente longo, e não estava disposta a consolar ninguém, a não ser eu mesma.
Ele me fez um aceno com a cabeça, como se não confiasse em sua voz.
Dei uma passada na cozinha antes de subir. Não sentia vontade de jantar e era necessário informar a gentil senhora Mc Millian. Ela me deu um sorriso radiante e apontou para uma panela no fogo. "Estou preparando a sopa. Eu sei que está quente, mas não podemos comer saladas até setembro ".
A sensação de culpa me fechava o pescoço. De forma covarde, mudei a minha resposta, quando já estava quase saindo para fora da minha boca. "Adoro a sopa, quente ou não".
Antes que começasse a tagarelar, contei de Kyle, omitindo os detalhes mais embaraçosos.
"Parece realmente chateado com o divórcio", considerei, sentando-me à mesa.
Ele assentiu, continuando a servir a sopa. "Era uma relação destinada a terminar. Sua esposa se mudou para Edimburgo há alguns meses e é dito que tenha já um outro. Sabe como são as más línguas... Ele não é nem um pouco santo, mas está amarrado a esses lugares e não queria deixar a aldeia ".
Eu enchi um copo de água da jarra. "É por isso que não se decide a ir embora?"
A governanta serviu a sopa nos pratos e antes que fosse dito algo, comecei a comer esfomeada. Eu estava com mais fome do que eu acreditava.
"Kyle não diz outra coisa que dizer que está cheio desse lugar, da casa, do Sr. Mc Laine, mas ele parece bem de ir. Quem mais o aceitaria? "
Eu olhei sobre o prato, curiosa. "Não é um enfermeiro graduado?"
Mc Millian partir um pãozinho em duas partes. "Ele é, claro, mas medíocre e preguiçoso. Certamente, não se pode dizer que se mata aqui. E muitas vezes o seu hálito cheira a álcool. Eu não quero dizer que é um bêbado,porém ... "Sua voz exsudava desaprovação.
"Eu amo essa casa", eu disse, sem refletir.

A mulher estava atônita. "Realmente, senhorita Bruno?"
Inclinei os olhos no prato, as bochechas em chamas. "Eu me sinto em casa aqui", expliquei. E entendi que estava a falar a verdade. Apesar das mudanças de humor do meu escritor fascinante, eu estava à vontade entre essas paredes, longe do sofrimento do meu passado esmagador.
Mc Millian recomeçou a tagarelar e aliviada acabei o meu prato. Minha mente corria sobre trilhas desviados e irregulares e o destino era sempre, inevitavelmente, Sebastian Mc Laine. Eu estava dilacerada entre a inexplicável necessidade de sonhar novamente e o desejo de deixar minhas ilusões para trás.
Kyle voltou para a cozinha alguns minutos depois, pior do que nunca. "Detesto cordialmente Mc Laine", disse.
A governanta parou na metade de uma frase para censurá-lo. "Vergonha, falar mal assim de quem te dá comida".
"Melhor morrer de fome do que ter que lidar com ele" foi a réplica irritada do outro. O ressentimento em sua voz me fez tremer. Ele não era um servidor devoto, isto eu já tinha intuído, mas o seu ódio era quase palpitante.
Kyle abriu o frigorífico e tirou duas latas de cerveja. "Boa noite, caro senhor. Eu vou para o quarto celebrar o divórcio ". Um tic nervoso fazia dançar o seu canto direito do olho.
Eu e a governanta nos olhamos em silêncio, até que saímos.
"Foi realmente indelicado falar assim do pobre senhor Mc Laine" foram as suas primeiras palavras. Então, me fixou franzindo a testa. "Acha que pretende suicidar-se?"
Eu ri, antes de conseguir me segurar. "Não me parece o tipo", a tranquilizei.
"É verdade. É muito superficial para nutrir sentimentos profundos por quem quer que seja", disse com desgosto. A preocupação com Kyle sumiu como o orvalho com o sol e passou a listar as vantagens, segundo ela, de viver no campo ao invés da cidade.
Ajudei-a a arrumar os pratos e fomos para nossos quartos. Eu no primeiro andar, ela em um quarto não muito distante da cozinha, no piso térreo.
Eu me virei e virei muitas vezes antes de adormecer e caí num sono agitado. De manhã, estava com as bochechas duras pelas lágrimas noturnas que não lembrava ter derramado.
Não sonhei com Sebastian naquela noite.
O dia seguinte era terça-feira e Mc Laine já estava rabugento desde bem cedo.



"Hoje, pontual como cobrador de impostos, virá Mc Intosh", disse seriamente. "Não posso dissuadi-lo de aparecer. Eu tentei todas as formas. De ameaças a súplicas. Parece ser impermeável a todas as minhas tentativas. É pior do que um abutre".
"Talvez queira só assegurar-se que o senhor esteja bem", observei, só para dizer algo.
Ele olhou para o meu rosto, então explodiu em uma risada ruidosa. "Melisande Bruno, és uma figura... O caro Mc Intosh vem porque considera como sendo seu dever, não porque nutra um afeto particular por mim".
"Dever? Não entendo... Na minha opinião, o seu único propósito é fazer uma visita. Ele deve ter algum interesse", eu disse obstinada.
Mc Laine fez uma careta. "Minha cara... Não serás uma daquelas tão ingênuas para acreditar que tudo é como parece? Não é tudo branco e preto, há o cinza, por assim dizer".
Eu não respondi, o que eu poderia dizer? Que tinha chegado à verdade sobre mim? Que para mim, realmente não há nada além do branco e preto a ponto de sentir náusea.
"Mc Intosh tem sentimentos de culpa pelo acidente e acha que ele tem que sair e me ver regularmente, mesmo se ele não se importa", acrescentou malignamente.
"Sentimento de culpa?", repeti. "Em que sentido?"
Um relâmpago iluminou a janela atrás das suas costas e depois houve um alto trovão. Ele não se virou, como se não pudesse tirar os olhos de mim.
"Está se preanunciando um dilúvio torrencial. Talvez isso distraia Mc Intosh de vir hoje. "
"Eu duvido disso. É só uma tempestade de verão. Uma hora e tudo acabou", eu disse praticamente.
Ele me olhou com tanta intensidade que causou calafrios sutis ao longo da coluna vertebral. Ele era um homem estranho, mas tão carismático para apagar todos os outros defeitos.
"Queres organizar as prateleiras à esquerda?" Eu perguntei nervosamente, evitando o olhar ardente de seu olhar.
"Dormiste bem esta noite, Melisande?"
A pergunta me pegou de surpresa. O tom era leve, mas subentendia uma premente urgência que me levou à sinceridade.
"Não muito".

"Sem sonhos?" Sua voz era leve e clara como a água de um rio plácido e me fez transportada por aquela corrente refrescante.
"Não, esta noite não".
"Querias sonhar?"
"Sim", eu respondi de impulso. O nosso diálogo era surreal, mas eu estava pronta a continuá-lo infinitamente.
"Talvez te aconteça de novo. O silêncio deste lugar é ideal para embalar sonhos", disse gelidamente. Voltou ao computador, já esquecido de mim.
Fantástico, eu disse a mim mesma, humilhada. Ele tinha jogado um osso como se faz com um cachorro e eu tinha sido tão idiota a agarrá-lo como se eu estivesse morrendo de fome. E eu estava realmente com muita fome. Dos nosso olhares, da nossa intensa cumplicidade, dos seus sorrisos inesperados.
Encurvei os ombros e recomecei a trabalhar. Naquele momento voltei a pensar em Monique. Ela sim era capaz de virar a cabeça dos homens, a inseri-los em uma rede de mentiras e sonhos, para conquistar sua atenção com uma experiência consumada. Uma vez perguntei-lhe como ela tinha aprendido a arte da sedução. No começo, ela respondeu. "Isso não se aprende, Melisande. Ou o tens desde sempre ou deves só sonhar ". Depois, se virou para mim e a sua expressão se suavizou. "Quando terás a minha idade, saberás como fazer, verás".
Agora eu tinha essa idade e eu estava pior do que antes. Meu conhecimentos masculinos sempre tinham sido esporádicos e de curta duração. Qualquer homem me fazia a mesma sequência de perguntas: Como te chamas? O que fazes na vida? Que carro tens? Ao dizer que não tinha licença parecia ser portadora de uma terrível doença contagiosa. E eu não me abria, com certeza, às confidências.
Passei a mão sobre a capa do livro. Era uma edição de luxo, em couro marroquino, Orgulho e Preconceito, de Jane Austen.
"Eu aposto que é teu favorito".
Levantei a cabeça de uma vez. Mc Laine me estudava por baixo das pálpebras meio fechadas, um brilho perigoso naquele manto negro.
"Não", eu disse, organizando o livro na prateleira. "Eu gosto dele, mas não é o meu favorito".
"Então será Picos de tempestades". Ele me presenteou um sorriso impressionante e inesperado.
Meu coração saltou e por um triz não se precipitou no vazio. "Nem mesmo", respondi, observando com alegria a firmeza da minha voz.

"Não termina realmente muito bem. Como já te disse, tenho uma forte preferência pelo final feliz ".
Ele virou a cadeira de rodas e ficou a poucos metros de mim, sua expressão absorvida. "Persuasão, sempre da Austen. Acaba muito bem, não podes negar isso. " Não tentava sequer esconder o quanto ele estava a divertir-se e eu também tinha me apaixonado por aquele jogo.
"É engraçado, admito, mas ainda está longe. É um livro focado na espera e não sou boa em esperar. Muito impaciente. Eu terminaria me acostumando ou mudaria o desejo".
Agora minha voz era frívola. Sem perceber, eu estava flertando com ele.
"Jane Eyre".
Ele não esperava minha risada e ficou a me olhar, restrito.
Passaram vários minutos antes que eu pudesse responder. "Finalmente! Eu pensei que levaria séculos... "
Uma sombra de sorriso veio à sua carranca. "Eu tive que chegar lá imediatamente, na verdade. Uma heroína com uma história triste e solitária atrás dela, um homem de um passado sofrido, um final feliz depois de mil travessias. Romântico. Apaixonado. Realista". Agora também seus lábios estavam sorrindo, bem como seus olhos. "Melisande Bruno, estás ciente de que podes te apaixonar por mim, como Jane Eyre do Sr. Rochester, que olha o acaso, é o seu empregador?"
"O senhor não é o Sr. Rochester", eu disse calmamente.
"Eu sou tão lunático quanto ele", ele se opôs com um meio sorriso que não pude deixar de recrutar.
"Eu concordo. Mas eu não sou Jane Eyre. "
"Isso também é verdade. Ela era maçante, feia, insignificante", disse ele, arrastando as palavras. "Ninguém saudável de mente e olhos podia dizer isso de ti. Os teus cabelos vermelho se notariam a milhas de distância.
"Não me parece exatamente um elogio..." eu disse brincando, com um lamento.
"Quem se faz notar, de uma forma ou de outra, nunca é feia, Melisande", ele disse gentilmente.
"Então, obrigada".
Ele sorriu. "De quem tomastes esses cabelos, senhorita Bruno? Dos teus pais de origem italiana?
A insinuação da minha família ajudou a desfocar a felicidade desse momento. Desviei o olhar e comecei a organizar os livros nas prateleiras.

"Minha avó era ruiva, como dizem. Meus pais não, nem mesmo minha irmã.
Ele se aproximou com a cadeira de rodas das minhas pernas, e lutando para consertar os livros. Naquela distância infinitesimal, não consegui perceber seu perfume suave. Uma mistura misteriosa e sedutora de flores e especiarias.
"E o que faz uma graciosa secretária de cabelos ruivos e antepassados ​​italianos em uma remota aldeia escocesa?"
"Meu pai emigrou para manter sua esposa e filha. Eu nasci na Bélgica". Estava procurando uma maneira de mudar o discurso, mas era difícil. Sua proximidade confundia meus pensamentos, enrolando-os em um novelo difícil de desmanchar.
"Da Bélgica para Londres e depois para a Escócia. Com só vinte e dois anos. Irá admitir que é pelo menos curioso.
"Vontade de conhecer o mundo", respondi reticente.
Olhei para ele. Sua dura carranca tinha desaparecido como a neve no sol, substituída por uma curiosidade saudável. Não havia como distraí-lo. Do lado de fora, a tempestade era furiosa, em toda a sua violenta intensidade. Uma batalha semelhante estava acontecendo dentro de mim. Comunicar com ele era natural, espontâneo, libertador, mas não podia, não devia, falar solta, ou ia me arrepender.
"Vontade de conhecer o mundo para pousar neste canto remoto do mundo?" O seu tom era abertamente cético. "Não precisas mentir para mim, Melisande Bruno. Eu não te julgo, apesar das aparências ".
Alguma coisa se quebrou dentro de mim, liberando lembranças que eu acreditava sepultadas para sempre. Uma só vez confiei em alguém e acabou mal, minha vida quase foi destruída. Somente o destino impediu uma tragédia. A minha.
"Eu não estou mentindo. Mesmo aqui se pode conhecer o mundo ", disse sorrindo. "Eu nunca estive em Highlands, interessante. E ainda, eu sou jovem, ainda posso viajar, ver, descobrir novos lugares ".
"E assim te propões a partir". Sua voz estava rouca agora.
Eu me virei para ele. Uma sombra tinha caído sobre o rosto. Havia algo desesperado, furioso, predatória nele naquele momento.
Sem poucas palavras, me limitei a fixá-lo.
Ele rapidamente virou a cadeira de rodas, dirigindo-se para a escrivaninha. "Não te preocupes. Se continuar sendo tão indolente, eu vou te mandar embora eu mesmo, assim poderás retomar a tua jornada pelo mundo ".



Suas palavras bruscas eram quase um balde de água gelada jogada sobre mim. Ele parou na frente da janela, ancorado na cadeira de rodas com ambas as mãos, os ombros enrijecidos.
"Ele estava certo. A tempestade já tinha acabado. Não há como evitar Mc Intosh hoje. Parece que não faço nada além de errar.
"Olhe, olhe, um arco-íris". Ele me chamou sem se virar. "Venha ver, senhorita Bruno. Um espetáculo fascinante, não acha? Eu duvido que já tenha visto um. "
"Em vez disso, eu vi", respondi, sem me mover. O arco-íris era o símbolo cruel do que eu tinha sido negada eternamente. A percepção das cores, suas maravilhas, seu mistério arcaico.
Minha voz era tão frágil como uma placa de gelo, meus ombros mais rígidos do que os seus.
Ele tinha levantado de novo uma parede entre nós, alta e inexorável. Uma defesa inviolável.
Ou talvez eu tivesse que fazer isso primeiro.

Capítulo sexto






"Queres jantar comigo, Melisande Bruno?"
Eu o fixei com os olhos parados, acreditando não ter entendido bem. Ele tinha me ignorado por horas e as raras vezes que tinha se dignado a falar, tinha sido antipático e frio.
No começo, pensei em recusar, indignada pela sua atitude infantil e mutável, então a curiosidade teve mais força. Ou talvez foi a esperança de rever o seu sorriso, aquele malando, hospitaleiro, acolhedor. No entanto, seja qual for o motivo, minha resposta foi afirmativa.
A Sra. Mc Millian ficou tão chocada com a novidade que ficou em silêncio enquanto servia o jantar, despertando a nossa diversão mútua.
Mc Laine tinha relaxado e não tinha mais a expressão rígida que eu tinha aprendido a temer.
Nosso silêncio foi cúmplice e quebrou-se somente quando a governanta nos deixou.
"Conseguimos deixar a cara Millicent sem palavras... Eu sei que acabaremos no livro dos recordes dos primatas" ele observou com uma risada que me tocou no centro do coração.
"Sem dúvida" concordei. "É um negócio realmente titânico. Eu duvidava ver esse dia ".
"Eu concordo." Piscou o olho para mim e pegou um espeto de carne.
O jantar improvisado era informal, mas delicioso, e sua companhia era a única que eu podia desejar. Eu prometi não fazer nada para arruinar aquela atmosfera idílica, então me lembrei que dependia só em parte de mim. O meu parceiro já havia demonstrado, em várias ocasiões, que era fácil ficar com raiva e sem qualquer razão aparente.
Agora ele estava sorrindo e tive um pensamento de não saber a cor exata de seus olhos e cabelos.
"Então, Melisande Bruno, gostas de Midnight Rose?"
Eu gosto de ti, especialmente quando estás tão animado e em paz com o mundo.



Eu disse em voz alta: "Quem não gostaria? É uma fatia do paraíso, longe do frenesi, do estresse, da loucura rotineira ".
Ele parou de comer, como se estivesse se alimentando da minha voz. E eu também comecei a mastigar mais devagar, para não quebrar esse feitiço, mais frágil do que o cristal, mais volátil do que uma folha de outono.
"Para quem vem de Londres deve ser assim" disse. "Viajaste muito?"
Levei o copo de vinho à boca antes de responder. "Menos do que eu teria gostado. Mas entendi uma coisa: que o mundo é descoberto nos cantos, nas dobras, nos sulcos, não em grandes centros ".
"Sua sabedoria é igual só à sua beleza", disse ele seriamente. "E o que estás descobrindo nesta adorável aldeia escocesa?"
"Ainda não vi a aldeia", lembrei, sem rancor. "Mas Midnight Rose é um lugar interessante. Aqui parece-me que o mundo pode parar, e não sinto a falta do futuro ".
Em resposta, ele balançou a cabeça. "Percebeste a essência mais íntima desta casa em tão pouco tempo... Eu ainda não consegui ..."
Não respondi, o medo de superar essa intimidade recuperada de frear minha língua.
Ele me estudou atentamente, como de costume, como se fosse o conteúdo de uma vitrine e ele um microscópio. A próxima pergunta foi meditada, explosiva, presságio de um desastre iminente.
"Tens família, Melisande Bruno? Algum dos seus ainda está vivo? "
Não parecia uma pergunta ociosa, feita só por fazer. Havia um interesse afiado e autêntico nisso.
Mascarei a hesitação bebendo ainda vinho e, entretanto ruminava a resposta a dar. Revelar que minha irmã e meu pai ainda estavam no mundo daria origem a uma sequência de outras perguntas insidiosas que eu não estava pronta para lidar. Eu era realista: aquele convite para o jantar nasceu só porque naquela noite eu estava entediada e estava procurando uma válvula de escape. Eu, a secretária ainda desconhecida, era ideal para o propósito. Não haveria mais outro jantar. Eu escolhi mentir porque era mais fácil, menos complicado.
"Sou só no mundo". Só quando minha voz apagou, percebi que não era exatamente uma mentira. Foi intencional, não nos fatos.
Eu estava sozinho, independente de tudo. Eu não podia contar com ninguém, além de mim mesma. Isso me fez sofrer tanto a me fazer pensar que eu teria perdido a razão, mas estava habituada a isso. Absurdo, triste, doloroso, embora verdadeiro.
Acostumado a não ser amada. Incompreendida. Sozinha.
Ele pareceu absurdamente satisfeito com a minha resposta, como se fosse a certo. Certa para o que, eu não sabia dizer.
Ele levantou o copo de vinho, meio vazio, em um brinde.
"A quê?" perguntei, imitando-o.
"Que tu possas sonhar ainda, Melisande Bruno. E que os teus sonhos se tornem realidade.
Seus olhos sorriram acima do copo.
Eu renunciei a entender. Sebastian Mc Laine era um enigma vivo, e seu carisma, seu magnetismo animal, eram suficientes como respostas.
Naquela noite eu sonhei pela segunda vez. A cena era a mesma que a anterior: eu estava em uma camisola, ele ao pé da minha cama com roupas escuras, nenhum vestígio da cadeira de rodas.
Ele me estendeu a mão, um sorriso a curvar o canto de sua boca. "Dança comigo, Melisande".
Seu tom era delicado, doce, suave como a seda. Um pedido, não uma ordem. E os seus olhos... Pela primeira vez imploravam.
"Estou sonhando?" Eu pensei de tê-lo só pensado, ao invés disso eu tinha perguntado realmente.
"Somente se queres que seja um sonho. Caso contrário, é realidade" disse categoricamente.
"Mas o senhor caminha..."
"Nos sonhos tudo pode acontecer" respondeu, guiando-me em uma valsa, como na primeira vez.
Senti um movimento de raiva. Porque, no MEU sonho, os pesadelos dos outros eram apagados, enquanto o meu continuava íntegro, na sua perfeição virulenta? Era o MEU sonho, mas não se deixava domesticar ou amaciar. Sua autonomia era bizarra e irritante.
De repente eu parei de pensar, como se ficar em seus braços fosse mais importante do que meus dramas pessoais. Ele era descaradamente belo e me senti honrada de tê-lo em meus sonhos.
Nós dançamos por um longo tempo, ao ritmo de uma música inexistente, os corpos em perfeita sincronia.
"Eu pensei que não ia mais sonhar contigo" eu disse, estendendo a mão para tocar seu rosto. Era suave, quente, quase quente.
Sua mão levantou-se para entrelaçar-se à minha. "Eu também pensava que não ia mais sonhar".
"Pareces tão real..." disse em um sopro. "Mas és um sonho ... És muito doce para ser algo diferente ..."
Ele riu e me apertou com mais força.
"Eu te deixo com raiva?"
Olhei para ele, mal-humorada. "Há momentos em que eu lhe daria um soco".
Ele não parecia ofendido, aliás satisfeito. "Eu faço de propósito. Eu gosto de mexer contigo".
"Por quê?"
"É mais fácil mantê-la afastada".
O som estridente do pêndulo invadiu o sonho e isso provocou a minha insatisfação. Porque ele estava se afastando, de novo. Como se fosse um sinal.
"Fique comigo", implorei.
"Eu não posso".
"É o meu sonho. Eu decido" respondi.
Ele estendeu a mão, tocou meus cabelos em uma carícia, seus dedos mais leves que plumas.
"Sonhos nos fogem, Melisande. Eles nascem de nós, mas eles não nos pertencem completamente. Eles têm sua vontade própria e se acabam quando eles decidem. "
Eu me abaixei, como uma menina. "Eu não gosto disso".
Seu rosto foi atravessado por uma gravidade incomum. "Ninguém gosta disso, mas o mundo é injusto por antonomásia".
Tentei reter meu sonho, mas meus braços estavam muito fracos, e meu grito era apenas um sussurro. Ele desapareceu rapidamente, como a primeira vez. Eu me encontrei acordada, as orelhas doídas por um barulho ensurdecedor. Então percebi, com desânimo, que eram as batidas arrítmicas do meu coração. Ele também estava indo por conta dele, como se nada mais pertencesse a mim. Eu não tinha controle sobre nenhuma parte do meu corpo.
Mas o que me deixou atordoada era que eu nem tinha mais nem minha mente e os meus sentimentos.
A carta chegou naquela manhã e teve o efeito disruptivo de uma pedra jogada em uma lagoa. Termina em um certo ponto, mas seus efeitos se espalham em pontos circundantes, em círculos concêntricos e muito extensos.
Meu humor estava nas estrelas e comecei o dia cantarolando. Definitivamente não é de mim.
A Sra. Mc Millian serviu o pequeno almoço em um silêncio religioso, ocupada a fingir de não estar curiosa com o jantar da noite anterior.
Eu decidi não deixar as coisas assim no ar. Eu tinha que esclarecer suas dúvidas antes que ela criasse suas próprias certezas, e prejudiciais para minha reputação, e talvez também para o Sr. Mc Laine. Toda esperança sentimental para com ele era apenas o nascimento dos meus sonhos, e eu não tive que ceder à sua evanescente magnificência.
"Sra. Mc Millian ..."
"Sim, senhorita Bruno?" Ele estava passando manteiga na torrada e fez a pergunta sem levantar os olhos.
"O Sr. Mc Laine se sentiu sozinho ontem à noite e me pediu para fazer-lhe companhia. Se não fosse eu, o teria pedido a senhora. Ou a Kyle ", eu disse com firmeza.
Ela ajustou os óculos no nariz e assentiu. "Certamente, senhorita. Eu nunca pensei mal. É óbvio que este foi um episódio isolado ".
Sua segurança me deixou gelada, embora fosse razoável. No fundo, eu também pensava assim. Não havia motivos para esperar que o âmbito de solteiro de ouro da região se apaixonasse por mim. Ele estava em uma cadeira de rodas, não cego. Meu mundo em preto e branco era a prova viva e constante da minha diversidade. Não podia me dar ao luxo de esquecê-lo.
Nunca. Ou iria acabar no fim aos pedaços.
Subi as escadas como qualquer outro dia. Eu me senti inquieta, apesar da tranquilidade que ostentava.
Sebastian Mc Laine já estava sorrindo quando eu abri a porta e mandou o meu coração diretamente para o céu. Espero não ter nunca que ir retomá-lo.
"Bom dia, senhor", o cumprimentei com calma.
"Como somos formais, Melisande", ele disse em repreensão, como se tivéssemos compartilhado uma maior intimidade do que um simples jantar.
As minhas faces queimavam, e eu tinha certeza de corar, apesar de não ter idéia do significado real dessa palavra. O vermelho era de cor escura, idêntico ao preto no meu mundo.
"É só respeito, senhor", eu disse, suavizando meu tom formal com um sorriso.
"Eu não fiz muito para merecer isso", ele refletiu. "Na verdade, teria parecido odioso às vezes".
"Não, senhor" eu disse, caminhando em um terreno minado. O perigo de desencadear sua raiva estava sempre latente, presente em todas as nossas trocas verbais, e não conseguia diminuir a guarda. Embora meu coração já tivesse feito isso.
"Não mintas. Eu não suporto isso " ele respondeu sem perder seu sorriso maravilhoso.
Eu me sentei na frente dele, pronto para fazer os trabalhos para os quais era paga. Claro que não estava apaixonada por ele. Isso estava fora de questão.
Ele indicou uma caixa de correio na escrivaninha. "Separa o correio pessoal daquele do trabalho, por favor".
Tirar os olhos dos seus, cheios de uma nova doçura, foi um esforço. Eu continuava a senti-los sobre mim, quentes e irresistíveis e me esforcei para me concentrar.
Uma carta atraiu minha atenção porque não havia remetente e a caligrafia no envelope me era conhecida. Como se isso não bastasse, o destinatário não era meu escritor amado, mas eu mesma.
Fiquei paralisada, o envelope entre os dedos, a cabeça cheia de pensamentos contrastantes.
"Algo está errado?"
O meu olhar se elevou e encontrou o seu. Ele me fixava atento e percebeu que nunca tinha parado de fazer isso.
"Não, eu... Está tudo bem... É só que..." Estava perdida em um dilema labiríntico: contar-lhe sobre a carta? Se eu tivesse ficado em silêncio, havia o perigo de que mais tarde Kyle lhe dissesse. Foi ele quem retirou o correio e colocou-o na escrivaninha. Ou talvez ele não tivesse percebido que uma carta tinha outro destinatário. Podia contar com isso e reservar a carta para recuperá-la mais tarde? Não, impróprio. Mc Laine era muito analítico, e ele não perdia nada. O peso da minha mentira se transpôs entre nós.
Ele estendeu a mão, colocando-me de costas na parede. Ele tinha percebido a minha indecisão e pretendia ver com os seus olhos.
Com um suspiro pesado, passei o envelope.
Seus olhos se separaram dos meus só por um segundo, só o tempo de ler o nome no envelope, então voltaram para mim. A hostilidade voltou entre eles, densa como uma névoa, viscosa como sangue, negra como a desconfiança.
"Quem te escreve, Melisande Bruno? Um namorado distante? Um parente? Oh, não, que coisa estúpida. Tu me disseste que todos estão mortos. E então? Talvez um amigo? "
Peguei a bola no salto, continuando na mentira. "Será a minha antiga companheira de quarto. Jessica. Eu sabia que ela iria escrever para mim, e eu lhe disse meu endereço ", falei, surpresa com a forma como as palavras fluíram da minha boca, natural na sua falsidade.
"Leia então. Estarás ansiosa em fazê-lo. Não se preocupe, Melisande "Seu tom era suave, velado por uma crueldade assustadora. Naquele momento, percebi que meu coração ainda existia, apesar das minhas convicções anteriores. Estava inchado, sincopado, inconsciente do resto do corpo. Como a minha mente.
"Não... não há pressa... mais tarde, talvez ... Quero dizer ... Jessica não terá nenhuma grande notícia..." gaguejei, evitando seu olhar gelado.
"Eu insisto, Melisande".
Pela primeira vez na minha vida eu estava ciente da doçura do veneno, de seu cheiro mal humorado, de sua maldade enganosa. Porque a sua voz e sorriso dela não agitaram a sua fúria. Somente seus olhos o traíam.
Peguei o envelope que me entregava com a ponta dos dedos, como se estivesse infectado.
Ele continuava esperando. Havia um pouco de diversão sádica nesses olhos sem fundo.
Coloquei o envelope no meu bolso. "É da minha irmã". A verdade saiu da minha boca, libertando-me, apesar de não haver maneira de evitá-la. Ele permaneceu em silêncio, e eu continuei corajosamente.
"Eu sei que menti sobre meus parentes, mas ... eu sou realmente sozinha no mundo. Eu..." Perdi minha voz. Tentei novamente. "Eu sei que errei, mas não estava com vontade de falar deles".
"Eles?"
"Sim. Meu pai ainda está vivo. Mas só porque seu coração ainda bate". Meus olhos ficaram cobertos ​​de lágrimas. "É quase um vegetal. Ele é alcoólatra na última etapa, e nem se lembra de quem somos. Eu e Monique, quero dizer. "
"Estúpido mentir, senhorita Bruno. Não achou que sua irmã a escrevesse aqui? Ou quem sabe se sentiu por não cuidar de seu pai, deixando todo o fardo para outra pessoa? "Sua voz ressoou pelo estúdio, mortal como um tiro de espingarda.
Engoli as lágrimas e me levantei com ar de desafio. Eu tinha mentido, era inegável, mas ele estava me pintando como um ser abjeto e indigno de viver, não merecedor de respeito.
"Eu não vou permitir que me julgue, Sr. Mc Laine. Não sabe nada sobre minha vida, nem os motivos que me levaram a mentir. O senhor é o meu empregador, não meu juiz, nem muito menos o meu carrasco". A calma fatal com a qual falei me surpreendeu mais do que a ele, e levei uma mão à minha boca, como se estivesse falando sozinha, desconectada da mente, dotada de autonomia como meu coração ou meus sonhos.
Eu pulei, caindo a cadeira para trás. Eu a reuni com mãos trêmulas, a mente em estado catatônico.
Eu já tinha chegado à porta quando ele falou com gélida dureza. "Tire o dia de folga, senhorita Bruno. Parece-me muito perturbada. Nos veremos amanhã ".
Cheguei ao meu quarto em um estado de transe, e corri para o banheiro ao lado. Aqui lavei o rosto com água fria e estudei minha imagem no espelho. Foi demais. Tudo aquele preto e branco de onde eu estava cercada era mais perturbador que uma cortina funerária. Senti-me perigosamente desequilibrada sobre a borda de um precipício. A assustar-me não era cair. Isso já tinha acontecido tantas vezes e eu me levantei. Minha pele e meu coração estavam pontilhados com milhões de cicatrizes invisíveis e dolorosas. Tinha medo de perder a razão, a lucidez que me tinha me mantido viva até aquele momento. Nesse caso, teria preferido me espatifar.
As lágrimas não derramadas torceram minhas entranhas e me reduziram a um trapo. Um zumbi, como o protagonista de uma das novelas de Mc Laine.
Minha mão tocava o bolso da saia de tweed, onde eu tinha colocado a carta de Monique. O que quer que ela quisesse, não conseguiria procrastinar mais. Peguei-a e levei para o quarto.
Ele pesava como um saco de concreto armado, e eu estava tentando não abri-la. Seu conteúdo só podia ser um: sofrimento. Eu tinha me acreditado muito forte antes de chegar a Midnight Rose. Quanto eu tinha errado. Eu não estava em absoluto.
Minhas mãos agiram por vontade própria, eu afinal tinha sido reduzida a um fantoche. Elas rasgaram o envelope e espalharam a folha que continham. Algumas palavras, típicas de Monique.



Cara Melisande,
Preciso de mais dinheiro. Obrigado por aqueles enviados de Londres, mas não são suficientes. Tu não podes pedir um adiantamento salarial para esse escritor? Não sejas tímida e escrupulosa. Foi-me dito que ele é muito rico. No fundo, ele é sozinho, paralítico, facilmente influenciável. Faça isso logo.
Tua Monique.



Eu não sei por quanto tempo eu fique fixando a carta, talvez alguns minutos, talvez horas. Tudo perdeu a importância, como se minha vida tivesse sentido só enquanto apêndice Monique e do meu pai. Eu queria que ambos morressem, e aquele pensamento terrível, que durou um segundo, me encheu de horror. Monique tentou me amar, no seu modo egoísta naturalmente. E meu pai ... bem, as belas lembranças dele eram tão magras que bloqueavam a minha garganta. Mas meu pai permanecia. Aquele que me deu a vida, considerando-se depois no direito de pisoteá-la.
Dobrei a carta com cuidado, com uma atenção meticulosa e exagerada. Então, a fechei na gaveta da cômoda.
Dinheiro.
Monique precisava de dinheiro. Mais. Eu vendi tudo o que eu possuía em Londres, muito pouco na verdade, para ajudá-la e após algumas semanas, estávamos no ponto de partida. Eu sabia que os cuidados com o pai eram altos, mas agora eu estava começando a ter medo. Se Sebastian Mc Laine tivesse me demitido - só Deus sabia se ele tinha bons motivos para fazê-lo, mesmo que por diversão - eu teria estado no meio da rua. Como eu poderia, após o que aconteceu, pedir-lhe um adiantamento? Era horrível só pensar em fazê-lo. Monique nunca tinha tido muito escrúpulos, com um descaramento invejável, mas para mim era diferente. Comunicar não era meu forte, pedir ajuda impossível. Muito medo da recusa. Uma vez só eu tinha feito isso, e ainda me lembrava do sabor do não, do sentimento de recusa, o barulho da porta batida no rosto.

"Kyle é realmente um imprestável. Ele desapareceu com o carro durante a tarde e retornou só há meia hora atrás. O Sr. Mc Laine está furioso. Devia ser chutado esse cara, eu o digo. Deixar o senhor assim sem assistência! "A voz da Sra. Mc Millian estava cheia de indignação, como se Kyle tivesse feito um erro pessoal.
Eu continuava movendo a comida no prato sem o menor apetite.



A mulher continuou a falar, prolixa como sempre, e não percebeu. Eu fiz um sorriso forçado e voltei a afundar na escuridão de meus pensamentos. Onde encontrar dinheiro? Não, não tive escolha. Faltavam duas semanas no momento em que ia receber o salário. Monique tinha que esperar. Eu teria enviado tudo para ela, esperando que não fosse um movimento imprudente. O risco de ser demitida sem aviso prévio foi assustadoramente real. O Sr. Mc Laine era um homem imprevisível com um caráter forte incomparável e obviamente não confiável.
Eu me afastei no quarto tão amedrontada que não consegui chorar nem ficar quieta. Dormi, invocando o sono, mas era tarde demais para chegar. Afinal não tinha controlo sobre nada, marginalizada pelo meu próprio corpo.
Desnecessário dizer que não sonhei naquela noite.

Capítulo sétimo






O zumbido na cabeça era uma lama quente preta que me envolvia, sem me deixar. A recepção de Mc Laine não foi fria como eu esperava, talvez porque simplesmente me ignorou sem responder às minhas saudações. Durante toda a manhã ele fingiu que eu não estava lá e fui engolida pela minha própria infelicidade.
"Droga! Maldito computador! "Ele disparou um soco na mesa, a um centímetro do PC.
Eu tentei falar naturalmente. "Alguma coisa não vai bem?"
Ele gemeu sem olhar para mim. "Alguma coisa? Tudo não vai. Tudo. "
Fiquei em silêncio, esperando que se explicasse.
"Parou de funcionar, maldição!" Ele apontou para o computador, o tom carregado de ódio.
Caminhei para o lado dele, desajeitada, numa tentativa de ajudá-lo, mesmo que meu conhecimento tecnológico fosse reduzido a nada.

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