Читать онлайн книгу «Storey» автора Keith Dixon

Storey
Keith Dixon
TEKTIME S.R.L.S. UNIPERSONALE
”Gosto de Lee Child, Robert Crais, Tess Gerritson. Portanto, penso que Keith Dixon está lá em cima, com os grandes.” – Crítico da Amazon. ”O escritor mais legível a trabalhar hoje em dia no género.” – Crítico da Amazon. Quando Paul Storey vem de Londres para casa, vem a fugir dum acontecimento que arruinou a sua vida profissional. Agora está lentamente a contactar outra vez com pessoas... mas as pessoas que vai conhecendo são bandidos, ladrões e burlões.


Keith Dixon nasceu no Yorkshire e foi criado nas Midlands. Escreve desde os treze anos, cultivando vários géneros: thriller, espionagem, ficção científica, literário. É autor de sete romances da coleção Investigações de Sam Dyke e doutras duas obras fora da área do crime, bem como de duas coletâneas de publicações em blogues sobre o ofício da escrita.
Quando não está a escrever entretém-se a ler, a aprender a tocar guitarra, a ver filmes e a devorar séries televisivas. Hoje em dia passa mais tempo em França do que provavelmente seria bom para ele.
Saiba mais, seguindo-o no Twitter @keithyd6, lendo o seu blogue em cwconfidential.blogspot.com ou ligando-se a ele em facebook.com/SamDykeInvestigations/
E do seu portal na web pode descarregar alguns livros gratuitos e saber mais acerca dos outros: keithdixonnovels.com
STOREY
Um romance criminal

KEITH DIXON

Tradução de
J. Freitas e Silva



Semiologic Ltd

Copyright Keith Dixon 2016
Copyrighy da tradução portuguesa: J. Freitas e Silva 2017
Publicado pela primeira vez por Semiologic Ltd

Keith Dixon reivindica o seu direito, ao abrigo da Copyright, Designs and Patents Act, 1988, a ser identificado como autor desta obra.
Todos os direitos reservados
Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por mimeografia, fotocópia ou quaisquer outros meios, eletrónicos ou físicos sem autorização expressa, por escrito, do autor.
Qualquer semelhança com qualquer pessoa viva ou morta é pura coincidência

Para informações, contactar: keith@keithdixonnovels.com

Imagem da capa © David Holt sob Creative Commons License
Design de Keith Dixon

Adira ao Grupo de Leitores em www.keithdixonnovels.com (http://keithdixonnovels.com/) ou ao Blogue em www.cwconfidential.blogspot.com (http://www.cwconfidential.blogspot.com/) para obter gratuitamente os dois primeiros livros da coleção Investigações de Sam Dyke!
Para Elmore
Il miglior fabbro

CAPÍTULO UM
A terceira vez que Paul Storey a viu era aquilo de que depois se lembraria, quando tudo correu mal.
Não olhara para ele nem lhe dissera nada, pelo menos de início. Mas sabia que tinha reparado nele quando transpôs a porta. Mesmo numa sala cheia de gente, havia algo na maneira como o ignorou – uma tomada de consciência estudada.
Perguntou a si mesmo se devia ir ter com ela, apresentar-se de modo informal, sentar-se à sua frente numa das mesas quadradas pretas e iniciar uma conversa. Vem cá todos os dias, não vem?... Não, era demasiado óbvio. Não produzia o efeito que pretendia. Talvez não devesse dizer nada, limitando-se a puxar uma cadeira, desdobrar um jornal, acenar-lhe com a cabeça e fazer as palavras cruzadas.
Talvez pensasse, então, que andava a persegui-la. Coisa que não era verdade. Era uma mulher atraente e ele acabava de reparar nela…
Entrava todas as manhãs à mesma hora no Starbucks, pouco antes do almoço. Roupa diferente todos os dias, mas com classe, de bom corte, saia abaixo dos joelhos, blusa justa no peito. Como uma mulher de negócios que, apesar de tudo, ainda pretende dar um ar de alguma sensualidade. Trazia uma pequena pasta castanha com fechos dourados. Saltos com alguma altura, mas sem dar um aspeto ordinário. Cabelo louro bem penteado, liso, preso atrás das orelhas… não, duma orelha – a orelha que usava quando estava ao telefone.
Escolhia sempre uma mesa à janela, olhando, através da Broadgate, para lá da estátua de Lady Godiva, em direção ao Wagamama e ao café que fica ao lado. Tinha um computador pequeno em que depenicava e depois parava e olhava pela janela. Mordia o lábio inferior. Bebericava um “Starbucks flat white”. Tinha boa estrutura, testa alta, sobrancelhas arqueadas que pareciam ter sido desenhadas com um lápis, e um toque de cor nas pálpebras. Nariz retilíneo pequeno, mas uns lábios que podiam ser ligeiramente mais carnudos. A pele era imaculada.
Desta vez, só estivera sentada cinco minutos e já estava outra vez de pé, a organizar as suas coisas dentro da carteira – chaves, bolsa, pacote de Kleenex, trocos que recebera do empregado. A meter o computador na pasta. Parecia irritada, nervosa, agora de pé, imóvel, a olhar pela janela para as pessoas que passavam.
Depois, virando-se e olhando diretamente para ele.
Agora, estava a caminhar na sua direção e ele não conseguia mover-se. Estava preso, sentado numa das cadeiras altas, junto da outra janela, perto dum altifalante que tocava Dylan.
Parou a um metro de distância, olhos pretos, loura esbelta de altura mediana, um pouco mais jovem do que ele, rosto um pouco duro.
A dizer: “Se vai ficar a olhar fixamente para mim o dia inteiro, podia, pelo menos, apresentar-se.”
“Estava à espera do momento certo. Não era este.”
“Que quer?”
“Viver um dia de cada vez sem complicações. Obrigado por perguntar.”
“De mim. Que quer de mim?”
Estava a entrar no jogo. Ele gostava disso. Era o que admirava nas mulheres de Londres – tinham pressa. Significava que podia acompanhar o ritmo delas ou abrandar. Nem sempre era ele a marcar o ritmo, tentando avaliar com que rapidez avançar. Era bom encontrar alguém assim na velha terra natal.
“Pergunto a mim mesmo por que razão veio aqui” – disse ele.
“Porque é que não havia de vir?”
“Está em traje de executiva. Está maquilhada. Traz um computadorzinho portátil e um telefone inteligente, senta-se a um canto e age como uma mulher de negócios. Onde é que as pessoas pensam que está quando fala com elas ao telefone? Qual é o endereço do escritório que tem no seu cartão de visita? Não consigo deixar de me interrogar acerca destas coisas.”
“Você é polícia?”
“Pareço um polícia?”
Percorreu-o de alto a baixo com os olhos como se ainda não se tivesse preocupado em olhar para ele.
“Deve ser” – disse ela. “Lá para o extremo mais inferior do espetro.”
“Seguros.”
“Vendas?”
“Perito. A sua casa arde ou tem uma inundação, eu digo quanto é que provavelmente vai receber.”
“Mas você está todos os dias no Starbucks. A observar mulheres estranhas e a assustá-las.”
“Você não está assustada.”
“Não? Como é que sabe? Como é que sabe o que é ir a um local público e descobrir alguém a olhar fixamente para si todos os dias?”
Paul encolheu os ombros. “Não pensava que fosse assim tão óbvio. Pretendia ser furtivo.”
“Eu apenas quero entrar aqui, tomar o meu café e não ser observada. Está bem?”
Estava a perder gás, com a ameaça a desaparecer-lhe dos olhos. Ele tentou situar o seu sotaque – uma vaga cadência escocesa, mais costa leste do que oeste. Era tão ligeiro que perguntou a si mesmo se não se teria dissipado por viver no Sul. Era atraente, fazia com que apetecesse ouvi-la falar para se poder acompanhar os altos e baixos.
Pegava, agora, na pasta e apoiava-se alternadamente numa e na outra perna. Trazia a sua habitual blusa branca por baixo do casaco escuro e ele pensou ver um soutien preto por baixo da blusa. Não tinha, portanto, um ar tão de executiva como isso.
“Como se chama?” – perguntou ela.
“Paul Storey.”
“Com ou sem e?”
“Com. Não há muita gente que faça essa pergunta. Vai procurar-me no Google?”
“Devia ir?”
“Eu não iria. Como é o seu nome?”
“Nem pense. Achava que tinha olhado para mim durante o tempo suficiente para eu lhe conceder um encontro?”
“Passou-me isso pela cabeça.”
“Não vai acontecer.”
“Estou a compreender.” Baixou a voz. “Que se passa? De que é que tem medo?”
“Da vida” – disse ela –, “do universo e de tudo. De muita coisa. E, respondendo à sua primeira pergunta, venho para aqui trabalhar porque o barulho ajuda-me a concentrar-me. No escritório há silêncio a mais.”
“Que faz?”
“Jornalista, pasquim local. Não é que seja da sua conta. Satisfeito?”
“Claro. Porque não haveria de estar?”
Parecia estar prestes a acrescentar qualquer coisa, mas, em vez disso, virou-se e foi-se embora. Observei o seu perfil enquanto empurrava a porta e se dirigia para a esquerda, em direção ao Primark. Com um sorriso aberto, girou a cadeira para se virar para a parede e pegar no café.
A pensar que ela não era jornalista! Vestia-se bem de mais e era mais nervosa do que qualquer jornalista que alguma vez conhecera.
Mas também que não se importava. Afinal, ele também não trabalhava em seguros.

CAPÍTULO DOIS
“Senhor Storey, se quer a minha opinião de profissional, o preço que fixou é de longe demasiado elevado para a casa do seu pai. As habitações na... bem, na sua zona de Coventry deram um grande tombo nos últimos anos. O senhor visa pessoas à procura da primeira casa e o preço que pretende vai desincentivá-las até de a ver por dentro.”
Des-incentivá-las? Meu Deus! “O problema não é meu, pois não? Essa é que é a sua função, vender” – disse.
“Claro…”
“Olhe, baixo cinco por cento se estiverem interessados em fazer negócio.”
“Hoje em dia os compradores são muito mais agressivos. É provável que façam ofertas quinze a vinte por cento abaixo do preço pedido, especialmente na sua zona. A escola local não tem grande reputação e, como sabe, tem sido noticiado um certo número de crimes no último ano. Coisas de pouca importância, coisas pequenas, mas que marcam, por assim dizer.”
“Compreendo o que está a dizer, mas não me importo. Tenho de vender.”
O agente imobiliário chamava-se Jeremy Frost e Paul não gostava dele. Havia muita coisa que lhe desagradava na sua postura. Fingia ser realista ao mesmo tempo que continuava a agir como seu amigo. Talvez fosse assim que trabalhassem atualmente.
Frost estava agora reclinado na sua reluzente cadeira de pele, a descrever o que iam fazer, a alinhar as fotos para serem distribuídas pelos vários parceiros nacionais, a colocar o vídeo no ecrã cíclico da vitrina, e, se quisesse pagar um pouco mais, podiam dar-lhe um espaço especial no portal da web, o que significava uma imagem maior e um aumento garantido de trinta por cento do número de visualizações…
Tratar da venda da casa do pai trouxera à superfície o pior que guardava. Era a casa onde fora criado e agora tinha de a vender. Era como se lhe tivessem pedido que arrancasse um braço e o leiloasse no eBay.
Perguntava Frost: “Tem uma data limite para a venda? Até regressar a Londres?”
“Eu não vou regressar.”
“Ah!, mas pensava…”
“Está preso a mim.” Fez um sorriso aberto. “O seu cliente favorito.”
Frost, devolvendo o sorriso: “Todos os nossos clientes são nossos favoritos.”
“Claro que sim. Mas uns são mais favoritos do que outros, não é? Alguns são tocados pelas vossas mãos mágicas e vendem rapidamente, enquanto outros são deixados a apodrecer. Eu não vou ser um desses, pois não, Jeremy?”
A expressão do agente pareceu congelar e começou a falar da satisfação do cliente, de questionários e dos muitos clientes que se mantinham com eles ao longo de várias vendas…
Paul alheou-se, a pensar: E ele? Que é que vendeu a si mesmo? Sabia que a situação estava a consumi-lo – ir todas as noites para casa, para uma casa vazia que ainda cheirava ao purificador do ambiente que o pai usava. Decidira vender e, depois, procurar outra coisa… um apartamento simpático, talvez perto do centro da cidade, ou uma coisa nos subúrbios mais finos, Styvechale ou Cheylesmore. Até então passaria o mínimo de tempo possível em casa. Tomar o pequeno almoço, sair, voltar à noite e cozinhar alguma coisa para jantar nos tachos e frigideiras que o pai usara durante trinta anos. Depois, ir para a cama, no mesmo quarto onde dormira até sair de casa para ingressar na Faculdade. As recordações… a paz… faziam parte do argumento de venda que criara para si mesmo: era um local temporário para voltar a ambientar-se. Depois de toda a agitação lá do Sul.
“Que tal?” – perguntou Frost.
Paul não ouvira a maior parte, mas não se importava. Os pormenores não eram tão importantes para ele como para Frost. Os compradores ou gostavam do aspeto e do preço da casa ou não gostavam. Ficaria lá o tempo que tivesse de ficar. Certamente não ia voltar a Londres e, em definitivo, não voltaria ao trabalho. Uma vez que se saia da polícia, incendeiam-se as pontes. É virar as costas ao incêndio e procurar nas sombras alguma coisa para ocupar o tempo.
“Faça o que tem a fazer. Venda-a, mas não dada” – disse.
“Nunca faria isso.”
“Eu sei que não, Jeremy. Conto consigo para vender a casa, mas do ponto de vista financeiro não preciso de o fazer. Compreende? Portanto, quero que faça o melhor negócio possível sem afugentar as pessoas. Se não tiver perspetivas nas próximas três semanas, reconsiderarei a questão do agente de que me sirvo. Não quero fazê-lo porque é uma dor de cabeça e não quero envolver-me outra vez nessas conversações bizarras. Venda a casa por um bom preço e ganhe a sua parte. É muito simples. Portanto, não se ponha aí de papo para o ar a ver em que param as modas. Sairei de casa quando quiser trazer cá pessoas para a verem e não interferirei. Mas tem de dar o seu melhor, ambos sabemos disso.” Reparou que Frost empalidecera e perdera a sua petulância. “Não se preocupe” – disse Paul –, “eu não sou mau tipo. Sou apenas um pouco impaciente, de vez em quando. Portanto, ajude-me a resolver isto e tudo correrá bem. De acordo?”
Estava agora em pé, olhando para a cara transtornada de Frost. Pensou que a confusão e o medo que nela via refletiam provavelmente a confusão e o medo que ele próprio tinha, embora nunca o confessasse, nem a si próprio nem a ninguém.
“Já tem os meus números” – disse. “Não tenha medo de os usar.”

Conduziu até casa, passando por ruas que achou mais apinhadas do que se recordava e estacionou à porta de casa do pai. Havia uma garagem nas traseiras, mas era difícil chegar lá e, além disso, estava cheia de coisas que o pai nunca tratara de deitar fora – uma velha máquina de lavar Hotpoint, uma mesa com uma perna partida, uma cadeira de braços. Dissera ao pai que se livrasse de toda aquela bagunça, mas parecia que ele nunca arranjara tempo para isso. Demasiado ocupado no bar ou na horta. A criar coisas que nunca comeu.

Estava a aquecer uma refeição no micro-ondas quando o telefone tocou.
“Milly.”
“Storey. Não telefonas, não escreves…”
“Quando nos morre o pai há coisas a fazer. Socializar não é uma delas.”
“Não tentes fazer com que me sinta culpada. A última vez que me senti culpada dalguma coisa foi em dois mil e quatro, quando derrubei um velhote com um andarilho.”
“Ias a conduzir?”
“A andar demasiado depressa, sem ver por onde ia. Não foi por isso que telefonei.”
“Porque é que telefonaste?”
Ela soltou um suspiro irritante e Paul imaginou-a recostada no seu sofá, no apartamento que alugou ao lado do dele, em Battersea. Estaria de maillot e camisola pretos para treinar as rotinas de dança à frente da televisão, na prateleira por cima da qual se alinhavam os seus troféus reluzentes. Dançava aos fins de semana, com um tipo de Fulham, danças de salão e ensaiava o melhor que podia os seus passos.
Storey era, para ela, um projeto. Houve uma altura em que podiam ter tido alguma coisa, mas ele escolheu mal a oportunidade e deixaram de se falar durante três meses. Depois, reataram, mas numa base diferente. Ele apreciou o facto de ela ainda querer falar com ele, apesar de se ter vindo embora com apenas dois dias de pré-aviso, descarregando em cima dela a responsabilidade de vender a mobília antes que o senhorio a desse. Era hábil – havia de tratar do assunto.
“Ontem à noite apareceu um tipo para falar contigo” – disse ela. “Ouvi-o bater à tua porta e fui lá fora. Disse que trabalhava contigo e queria conversar.”
“Como era ele?”
“Um pouco mais alto do que tu, cabelo cortado à escovinha, lábios grandes, muito vermelho, como se usasse batom ou qualquer coisa parecida.”
“O Rick. Imaginei que ele pudesse aparecer.”
“Obrigado por me teres avisado.”
“Que lhe disseste?”
“Olha, é aqui que esta conversa se torna interessante, sabes? A maioria das vezes sou uma rapariga muito calma, mas, na realidade, neste caso portaste-te mal comigo, Storey. Não preciso de toda a tua história despejada na soleira da minha porta. Tenho a minha própria vida, sabes? Está bem que tenhas tido que ir tratar do funeral, e isso tudo, mas não tinhas de te ir embora, pura e simplesmente. Não quero saber da tua tensão, nem quero saber do teu trabalho. Não quero saber das tuas estantes. Não tens o direito de despejar isso tudo em cima de mim e depois pirares-te para as Midlands.”
“De acordo. Fiz mal. Então, que disseste ao Rick?”
Agora, imaginava-a a olhar para o teto, tentando lembrar-se do que o seu conselheiro lhe dissera acerca de se deixar controlar pela ira. Devia estar a contar até dez. Ou a imaginar anjos. Não imaginava o que ela faria para se recompor. “Disse-lhe que te tinhas ido embora” – respondeu. “Não disse para onde nem porquê. Fingi que não sabia. Não era isso que querias?”
“Não mencionaste o meu pai? Nem Coventry?”
“Segui as tuas instruções.” Já mais calma, um pouco aborrecida, num tom que ele reconhecia bem. “Que é que esse Rick quereria, afinal? Pensava que te tinhas demitido.”
“E demiti. Provavelmente, pensa que consegue fazer-me voltar atrás. Arma-se sempre um pouco em psicólogo. Achava que me conhecia melhor do que eu mesmo.”
“Merda, Storey, tu não te conheces. Andas a caminhar no escuro.”
“Inclino-me perante o teu superior conhecimento.”
“Olha para a tua história recente. Isso dir-te-á tudo o que precisas de saber.”
“Tenho de ir. O meu micro-ondas acaba de apitar.”
“Sim, está bem, não deixes arrefecer o hambúrguer.”
“É um empadão de carne.”
“Então, voltaste às origens. Receio por ti, receio mesmo.”
“Telefono-te quando estiver mais estabilizado.”
“Como se isso fosse acontecer” – disse ela, desligando.

CAPÍTULO TRÊS
Janice viu-o através da janela, antes de entrar. Que lata – apoderar-se do seu lugar favorito, descontraído como se lhe pertencesse. Supunha que era um homem atraente, moreno, como Pierce Brosnan se tivesse pais gregos, com aquele tipo de queixo com barba escura por fazer e cabelo preto forte. A roupa parecia também se ajustar a ele, mostrando o peito amplo e as ancas estreitas, mas de um homem que se mantinha em forma e não dum rapaz a crescer. Não tinha feições mal definidas, era vigoroso e penetrante, e os seus olhos pareciam atravessar-nos.
Podia ser interessante. Seria bom conhecer, por uma vez, um homem que pudesse assumir o controlo. Viu isso nele, aquele impulso de dominar, de ter as coisas à sua maneira. Podia ter gostado do desafio se não tivesse outros planos.
Portanto, ali estava ele, agora a tirar os olhos do livro, a olhá-la e a sorrir ao mesmo tempo, sabendo que ela ia franquear a porta, e apenas à espera que ela chegasse. O sorriso não lhe chega aos olhos, pensou ela, era uma coisa que ele fazia com a boca, um gesto social, reconhecendo que o jogo ia começar.
Dizia ele: “Pensava que nunca voltaria, com a minha rudeza, e tudo. Pensava que tinha quebrado o encanto.”
Ela olhou-lhe para a camisa de colarinho aberto, revelando um pelo encaracolado a sair por cima, para o casaco azul marinho que provavelmente veio da Next através duma loja de beneficência, para o livro agora virado para baixo, em cima da mesa – As Vinhas da Ira –, e pensou no modo como ele ganhava a vida: perito de seguros. Não acreditava. Agia como se tivesse uma missão, algo que fosse fazer da sua vida, algures onde fosse estar. Não era um burocrata ou alguém que olhasse para números e fizesse cálculos. Havia demasiada atividade por trás dos seus olhos. Algo assustador, mas intrigante.
“Peça-me um café” – disse ela.
Olhou-a por um momento, mas depois suspirou e levantou-se, dirigiu-se ao balcão, acenando alegremente para ela quando entrou na fila. Nem sequer perguntara o que ela queria. Provavelmente já sabia, do tempo que passara a observá-la.
Não faças o jogo dele – dizia para consigo. Não fiques intrigada.
Sentou-se e tirou o computador Microsoft Surface Pro 3, abriu o teclado aveludado e passou o dedo pelo ecrã para abrir o documento atual. Pôs o telemóvel Moto G Android em cima da mesa, ao lado dele. Gostava dos seus gadgets e sabia o nome e as especificações de todos eles. E, por alguma razão, queria convencer Storey de que era genuína, de que realmente era jornalista, de que o seu trabalho era, dalgum modo, importante. Normalmente, quando entrava no Starbucks, estava a escrever o seu diário ou, de vez em quando, a trabalhar numa das suas lendas. É assim que os espiões lhes chamam – às identidades falsas que criaram para si mesmos. Nesse momento tinha umas dez em curso e todos os dias tentava acrescentar mais um pormenor, mais uma caraterística ou um facto da vida a pelo menos duas das identidades. À medida que avançava, caraterizava-se.
O que lhe dava algo que fazer enquanto esperava que David voltasse.
Storey regressou com o café dela e outro para si mesmo.
“Há dois dias que não vem cá” – disse ela.
“Teve saudades de mim?”
“Não posso ter saudades de alguém que não conheço.”
“Tenho um pedido de desculpa a apresentar.”
Estava a deitar açúcar no café e parou.
“Não andava a persegui-la” – disse ele. “Não quero que pense isso. Estava aqui por acaso quando entrou. Achei que parecia interessante. Sabe o que quero dizer? Vê-se uma pessoa e acha-se que se gostaria de a conhecer, de descobrir como fala e o que tem para dizer.”
Sentou-se e observou-a, como se achasse que lhe tinha dado um presente.
Janice deteve-se por um instante e, depois, disse: “Importa-se que trabalhe? Por mais que adorasse conversar.”
Gostou da maneira como ele sorriu e como, a seguir, abanou a cabeça de modo que mostrava admiração, como se a competição em que estivessem empenhados tivesse passado para um nível diferente e ele soubesse que teria de melhorar o seu jogo. Mas não faças o jogo dele, não te deixes intrigar.
Abrindo o computador, virou-o de modo que ele conseguisse ver o ecrã. Não havia nada escrito no documento, à exceção dum cabeçalho – Próximos Passos –, mas olhou por um momento para a página em branco e depois apagou-o, escrevendo o seu nome verdadeiro e função, só para fazer alguma coisa. Araminta Smith, jornalista. Dera com o nome numa peça que tinham feito na escola e sempre gostara dele. Parecia ter classe, o papel de Arianta.
Storey ignorou o abandono dela, pegando no livro e continuando a ler.
Irritada, contra sua vontade, disse: “É bom, o Steinbeck?”
Ele baixou o livro.
“Ganhou o Prémio Nobel com o seu pior romance. Imagine como devia ser bom. Viu As Vinhas da Ira, o filme?”
“Talvez.”
“Duro como pedras para um filme de Hollywood, mas coberto de açúcar em comparação com o livro.”
Ela anuiu com um aceno de cabeça e voltou a olhar para o ecrã. Não sabia nada de literatura e começava a entrar em pânico quando as pessoas falavam de livros, não fossem fazer-lhe uma pergunta a que não soubesse responder. Nunca conseguia ler mais do que um artigo de jornal antes de adormecer. Um dia, começaria a concentrar-se nesse defeito e a corrigi-lo. Um curso curto em linha talvez bastasse.
Aproveitou a oportunidade que ela criara. “Então, está a trabalhar num artigo, não é? Ou é algo mais mundano – nascimentos, óbitos e casamentos?”
“Você não compreenderia” – disse.
… e depois perguntou a si mesma por que razão teria dito tal coisa. Por vezes, até ela se espantava com a sua maldade. Ele parecia ser razoavelmente inteligente; então, porque estava a tentar antagonizá-lo?
Inclinou o ecrã em direção a ela. “Não lhe posso dizer grande coisa acerca dele porque ainda estou a desenvolvê-lo. Estou apenas a investigar, a falar com pessoas.”
“Dê-me uma ideia, para não ficar magoado.”
Hesitou e, depois, disse: “É sobre corrupção no governo local. Não posso dizer mais nada.”
“Há muita em Coventry?”
“Ainda não sei. É por isso que estou a investigar.”
“Conhece pessoas com quem possa falar, pessoas que possam dar com a língua nos dentes? É isso que faz?”
Ela achou que a sua curiosidade era genuína, mas que não era bom deixá-lo avançar muito. Ainda não sabia nada acerca dele ou do que queria. Era bom que achasse interessante falar com ela, mas tinha demasiado que fazer e muitas coisas a que atender.
“Como disse, não posso falar disto. Mesmo que pudesse, não lhe dizia nada. Não faço ideia de quem você é” – disse. Fez uma pausa e acrescentou: “Que queria dizer com isso de viver um dia de cada vez?”
Ele encolheu os ombros. “Não leve a sério. Eu sou um brincalhão. Digo muita coisa que não sinto.”
“Não acredito. Acho que você fala muito a sério.” Já a ficar zangada por ele não a levar a sério, disse: “Bem, isso chateou-me. Portanto, pode deixar-me em paz?”
“Eu já cá estava.” Sem dar o braço a torcer.
“Preciso da mesa para trabalhar. Além disso, você já quase terminou o seu café.”
A expressão dele mostrava desânimo e empurrou a cadeira para trás, levantando-se. Finalmente, tinha-o tocado.
“Andarei por aí” – disse ele.
“Não perca tempo por minha causa.”
“Matar o tempo. Deixar-me estar. Ficar onde não sou desejado.”
“Ah, sim, você é escritor. Estou a perceber.”
Pegou na sua chávena de café, olhou em redor da sala movimentada e encaminhou-se para um banco vazio no canto oposto, perto das casas de banho. Ela reparou outra vez nos seus ombros largos e nas suas ancas estreitas, uma boa silhueta. Talvez lhe pegasse noutra altura, quando estivesse menos ocupada.
Ou talvez não.

Paul perguntava a si mesmo o que estava a fazer com aquela mulher. Ela fizera-lhe uma pergunta simples há uns dias e ele despejara o que pensava: que podia fazer, como podia recuperar a situação? Ainda não estava num estado de espírito propício para sair com alguém, mas já não conseguia deixar de pensar nela. Ali sentada a depenicar no teclado, a olhar pela janela, recusando-se a olhar na sua direção, de pernas cruzadas sobre os tornozelos por baixo da mesa.
Reparou noutros homens que também olhavam para ela – principalmente rapazes estudantes que tinham colonizado o local, sentados, envolvidos nas suas canadianas, de olhar fixo nos seus telefones ou a falar com outros vestidos exatamente como eles, exceto quanto aos lenços, que eram de cores variadas. Ela era diferente. Criava uma espécie de aura à sua volta, uma autossuficiência que parte dele queria abalar.
Era interessante… e era falsa.
Não conseguia explicar como sabia, mas compreendeu que ela estava a fingir ser alguém que não era. Olhava para as pessoas de modo oblíquo, como se não pudesse correr o risco dum olhar direto, como se isso dissesse demasiado acerca dela. Quando falava, atacava-nos, mantendo-nos à distância, cortando qualquer hipótese de amizade.
Mas então ele tinha estado a fixá-la com os olhos. Talvez ela estivesse verdadeiramente assustada com ele, com o que pudesse fazer.
Imaginemos que sim, pensou ele. Que faria eu para assustar as pessoas, a não ser estoirar-lhes os miolos?

Agora, um homem encaminhava-se para ela. Entrara pela porta de vidro e vira-a imediatamente. Não era grande, portava-se como quem sabia o que queria. Tinha barba cerrada, na sua maior parte ruiva, embora o cabelo fosse preto e se estendesse por cima das orelhas. Vestia um casaco preto de cabedal com corte de casaco desportivo e botões à frente, e calças de ganga azuis desbotadas. Havia nele uma solidez que lhe preenchia o casaco e um ritmo na maneira de andar que fez Paul pensar que trabalhava no exterior. Enquanto se encaminhava para a mesa da mulher, olhou em redor, cruzou brevemente o olhar com o de Paul e seguiu. Paul achou que tinha a tensão comprimida de alguém com receio de ser atacado, talvez imprevisível, de alguém preocupado com o seu estatuto.
Gostava de pensar que tinha jeito para analisar as pessoas e o seu comportamento. Mas então, pensou, quem não tem?
Quando o homem chegou à sua frente, ela deixou de escrever e levantou o olhar, recostando-se, parecendo descontraída, embora não sorrisse. Era alguém que conhecia, mas não queria ver.
Disse qualquer coisa e o Casaco de Cabedal inclinou-se sobre a mesa, apoiando os nós dos dedos de ambos os lados do computador. Ela estendeu um braço e fechou-o. Ele disse qualquer coisa em resposta a esse gesto e Paul viu as palavras atingirem-na – endireitou-se na cadeira e os tornozelos descruzaram-se debaixo da mesa.
Agora o homem apontava-lhe um dedo espetado e o ronco baixo da sua voz – que Paul ouvira, mas não entendera – tornava-se mais silencioso. A mulher desviou o olhar e o Casaco de Cabedal estendeu o braço para lhe tocar com o dedo na ponta do nariz, carregando. Ela recuou e disse qualquer coisa brusca.
Paul deixou o seu banco e dirigiu-se para eles, aproximando-se do homem de lado. Sentiu o cheiro a cabedal do casaco dele e bem assim o de um desodorizante forte. A mulher olhou para ele e franziu o sobrolho, que foi o sinal para que o Casaco de Cabedal olhasse para ele.
“Para que porra está você a olhar?”
“Eu sou maior do que você. Não arranje discussão.”
Agora o homem estava a virar-se, posicionando o corpo para o enfrentar. Paul viu que tinha uns olhos ferozes, pretos e vazios, lá bem no fundo. Provavelmente era da mesma idade que Paul, mas as rugas do rosto faziam-no parecer dez anos mais velho.
“Vá sentar-se num canto e fazemos de conta que nunca o vi” – disse o Casaco de Cabedal.
“Está a incomodar a senhora e eu quero que se vá embora.”
“Como é que se chama?”
“Paul Storey. E você?”
“Chamo-me Desapareça-Da-Porra-Da-Minha-Frente.”
“Os seus pais deram-lhe um grande início de vida, não deram?”
“Este é teu amigo, Minty?” Virara-se para olhar para a mulher, ainda sentada, franzindo o sobrolho dum modo que Paul começava a reconhecer.
“Vai lá para fora, Cliff. Mais tarde falo contigo” – disse ela.
Cliff. Era um nome que atualmente não se ouvia com frequência, pensou Paul, um nome dos anos sessenta, mas estava contente por ter um nome para usar.
“Não me digam o que fazer – nenhum de vocês. Quero entrar aqui e discutir contigo, e assim farei” – disse Cliff.
“Vai para casa, eu telefono-te.”
Cliff virou-se para olhar para Storey, tirando-lhe as medidas e avaliando a sua presença. Paul não achava que Cliff estivesse intimidado, mas apenas cauteloso. Provavelmente, ia a toda a parte com um séquito, com gente que o apoiasse ou fizesse o que ele dissesse. Isso dava-lhe uma confiança que transportava consigo como uma arma. Paul já vira aquilo e não gostara. As pessoas que controlavam outras daquela maneira tinham muitas vezes problemas para se controlarem a si mesmas.
Cliff endireitou-se mais e contornou a mesa pelo outro lado, ficando de pé ao lado da mulher, a olhar de novo para Paul. “Não gosto de si” – disse. “Mas você tem tomates. Conheço-o dalgum lado?”
“Duvido.”
“Pois, eu também. Mas há algo em si que reconheço. Hei de lembrar-me.”
“Não perca nada do seu sono com isso.”
“Não, esteja descansado.” Virou-se e encaminhou-se para a saída enquanto dizia aquilo, sem olhar para trás, ainda confiante.
A mulher disse a Paul: “Não vai sentar-se. Eu não precisava dum cavaleiro branco.”
“Eu sei.”
“Então porque é que se meteu?”
“Está-me na massa do sangue.”
Olhava-o fixamente com o primeiro sinal de curiosidade que já lhe vira, como se finalmente lhe tivesse chamado a atenção.
“Parecia que não queria falar com ele” – disse.
“Tinha-o aborrecido.”
“Algo que escreveu?”
“Não exatamente. Agora pode ir-se embora, por favor?”
Anuiu com um aceno da cabeça e estava para se retirar quando pensou numa coisa. “Minty?” – perguntou.
Ela levantou os olhos. “Araminta. Não se preocupe – nunca terá oportunidade de o usar.”
“Nome invulgar para uma escocesa.”
“Não para esta.”
“É sempre assim, tão agressiva?”
“E você é sempre assim, tão estúpido?”
Não disse nada, observou-a a olhar para ele, os olhos firmes, sabendo que estava a tentar entendê-lo. O mesmo que ele fazia em relação a ela. Não tinha a certeza de estar a divertir-se, mas aquilo mantinha-lhe a mente afastada doutras coisas. Como a maneira de ganhar a vida.
“Venha ter comigo mais tarde. Para bebermos um copo” – disse ela, sem mudar de expressão.
“Está bem. Aonde?”
Disse-lhe o nome dum bar e deu-lhe as indicações – o local era novo para ele, mas conhecia a zona de quando era criança.
“Dou-lhe o meu número” – disse ele, começando a dizê-lo e fazendo depois uma pausa para ela pegar no telefone e tomar nota.
Ela voltou a olhar para ele e acabou por pegar no telefone e registar o número. “Não é um encontro” – disse ela, terminada a operação. “Não precisa de se aperaltar. Nem sequer sei por que estou a fazer isto.”
“Não pense demasiado no assunto – vai estragar um belo momento.”
“Estarei lá a partir das oito.”
“Como é que a reconheço?”
“Sou a que está a de dedos no nariz. Já lhe disse, não se excite.”

CAPÍTULO QUATRO
O bar ficava em Ball Hill, a dez minutos a pé do velho campo de futebol de Highfield Road. Lembrava-se da zona como sendo uma movimentada zona comercial, com bancos, estação dos correios e lojas de toda a espécie. Uma biblioteca. Agora, metade das lojas estava entaipada e a maioria das que ainda estavam abertas era constituída por estabelecimentos de beneficência. A zona tinha-se degradado, em grande medida como o resto da cidade que vira até agora.
Quando entrou, viu imediatamente Cliff sentado a uma mesa redonda com outros três homens, Araminta mais afastada, a escrever num grande telefone preto.
Cliff estava a chamá-lo com um aceno e um grande sorriso no rosto.
“A Minty disse que vinha aí. Disse que você pensava que era um encontro amoroso. Bem, cá estamos.”
“Nada de conversas na primeira noite” – disse Paul.
Cliff ignorou a frase e disse: “Sente-se. Descontraia-se”, acenando com a cabeça para os outros que estavam à mesa. “Estes são o Holandês, o Gary e o Tarzan. Deixo-o adivinhar quem é quem.”
“Bem, eu não vou ficar por aqui.”
“Oh! não seja assim. Quero conhecê-lo. Primeiro, apanhou-me de surpresa, mas, pensando melhor, gostei do que fez. Defender a donzela.”
Araminta levantou o olhar. “Eia!”
Cliff olhou para ela, encolhendo os ombros.
“Ela não gosta disso. Não gosta de ser vista como a mulherzinha. Não posso dizer que a critique por isso. Está a vê-la a lavar a loiça numa pia, de avental?” Sorria, como se estivesse à espera duma resposta de Paul, os olhos numa pequena dança, a gozar a sua própria tirada, confundindo Storey.
Paul olhou para os outros homens. Um era alto, mesmo sentado, com um rosto magro e moreno e orelhas grandes. Provavelmente, Tarzan, a avaliar pela força que Paul descortinava no seu físico. Envergava uma t-shirt manchada por baixo dum casaco castanho de veludo cotelê que lhe dava um ar de roadie duma banda dos anos setenta. O homem do meio era louro e de pele pálida, rosto quadrado e lábios cor de rosa carnudos. Tinha um tórax largo, não era tão alto como Tarzan, mas também não era muito baixo, o cabelo louro e a pele pálida a sugerirem que talvez fosse Holandês, de nome e de nascimento.
O terceiro homem seria, então, Gary. O mais baixo de todos, com um brilho irrequieto e intenso nos olhos, como se ainda não tivesse visto nada de que gostasse. Tinha na mão uma base de copo que estava a amassar e a dobrar e da qual ia tirando lentamente finas tiras, coisa que fazia automaticamente, sem olhar, hábito de uma vida. A camisola de gola alta estava salpicada de tinta branca.
Paul suspirou. Esperava afastar-se dos malandros baratos daquele género. Como é que voltara a meter-se naquilo, olhando fixamente para pares de olhos mortos cujos donos sabiam pouco, pensavam menos e não controlavam os impulsos?
E que diabo fazia Araminta com eles?
Cliff observara-o a olhar para os homens. Agora levantava o queixo, chamando a atenção de Paul.
“Já os ordenou?” – perguntou. “Vá, agora puxe uma cadeira e vamos conversar. Estou convencido de que você tem muito que dizer a pessoas como nós. A Minty diz-me que trabalha em seguros. Acho bem. Toda a gente precisa de emprego. Eu preciso de emprego. Estes três génios precisam de emprego. Você é o único aqui que tem um, pelo que pode contar-nos como é.”
Paul puxou uma cadeira doutra mesa e sentou-se, mantendo a distância para os outros, sem querer fazer parte do grupo.
Disse a Cliff: “Já me lembro do seu nome. Cliff Elliot. A barba enganou-me. Andámos na mesma escola – Caludon Castle. Você andava uns anos atrás de mim, mas ganhou fama muito depressa. Uma vez, vi-o lutar com alguém no pátio. A única vez que vi alguém dar um verdadeiro murro numa luta de escola, em vez de luta livre.”
Cliff recostou-se na cadeira, a sorrir, olhando para os colegas, como que a dizer, Eu disse-lhes que era duro.
“Storey. Pois, eu bem disse que o conhecia, não disse? Você estava na equipa de râguebi, asa, ou qualquer coisa assim, sempre a fazer ensaios. Não é que alguma vez tivéssemos ganho alguma coisa. Aquilo era uma porcaria. Demoliram-na há dez anos, sabia? Construíram uma nova, uma dessas Academias.
“Então como é que a vida o tratou depois disso?”
“Merda, você não está interessado em mim. Está apenas a tentar descobrir o que se passa aqui.”
“É sempre bom reencontrar velhos amigos.”
Cliff sorriu e olhou para os seus homens, apontando um polegar a Paul.
“Veem? É o que eu digo. Fixe, não é? Eu tinha razão, não tinha?”
“Razão em relação a quê?” – perguntou Paul.
Cliff inclinou-se para a frente, por cima da mesa. “Eu disse a estes falhados que você era alguém em quem podia confiar. Vi isso no café, anteriormente. Você não se encolheu. Se eu não me tivesse vindo embora, teria tentado pôr-me na rua. Você é tanto dos seguros como eu – e eu não trabalho nos seguros.”
“A sério?”
Cliff ignorou a observação. “Que fez quando saiu da escola? Não o tenho visto cá na terra; em que é que se meteu?”
Paul hesitou, tomando consciência do espaço que o rodeava, dos outros clientes, da música que saía dos altifalantes doutra sala. Percebeu que estivera a falar alto para ser ouvido. Voltou a perguntar a si mesmo o que estava ali a fazer – precisava tanto de contactar com pessoas que necessitasse de conversar com Cliff e seus malandros de trazer por casa?
Reparou que Araminta já acabara de fazer o que estava a fazer no telefone e o olhava por cima dum copo de vinho tinto. Qual era o papel dela naquilo? Quando, mais cedo, lhe pedira que viesse tomar um copo com ela, teria planeado convidar também Cliff? Ou era uma coincidência ele também estar ali?
De repente, sentiu-se cansado, tolo e fora de forma para lidar com Cliff e as suas jogadas. Talvez fosse melhor ser frontal e deixar correr o marfim.
Pensando melhor, talvez não.
“Fui para o estrangeiro, andei por aí” – disse ele. “Fui ver o mundo. Voltei para Londres à procura de emprego. Entrei para os seguros.”
“Então, porque é que voltou para aqui?”
“Razões pessoais.”
Cliff sorriu. “A mulher pô-lo na rua?”
“Não sou casado.”
“Então… questões familiares. Morreu a mamã ou o papá.”
Paul não disse nada.
“Acertei numa, não foi? Voltou para enterrar alguém” – disse Cliff.
Paul limpou a garganta.
“Estou a ver que, como estamos a discutir velhos tempos, ainda não respondeu à minha pergunta. Como é que tem sido a sua brilhante carreira?”
Cliff abriu as mãos e encolheu os ombros. “Tenho um problemazinho com a autoridade, eu. Parece que não consigo segurar um emprego. Portanto, faço um pouco disto e um pouco daquilo. Eu e estes rapazes aqui. Os cientistas, como gosto de lhes chamar.”
“Vai-te lixar, Cliff”– disse Gary.
Paul percebeu que aquelas foram as primeiras palavras que qualquer dos outros proferiu.
Cliff prosseguiu: “E para o caso de estar a interrogar-se, não sou nenhum menino do coro. Choquei-o? Não, estive durante algum tempo às ordens de Sua Majestade. Digo isto num espírito de abertura e honestidade. Não queria que pensasse que estou a falar consigo sob qualquer tipo de dissimulação.”
“Mas a sua experiência não o pôs nos carris.”
Cliff voltou a sorrir.
“Não reconheceria os carris mesmo que caísse em cima deles e partisse o nariz.”
“Todos fazemos o que podemos para conseguir que o dinheiro chegue ao fim do mês.”
“É exatamente o que eu acho” – disse Cliff. Dirigiu outro olhar avaliador a Paul. “Então, voltou cá para um funeral. Calculo que os seus pais já tenham partido, os dois, pois se tivesse sido só um estaria em casa a amparar o outro. E não por aí, com gente como nós. Portanto, provavelmente tem vontade de arrumar as coisas, vender a casa e livrar-se de roupas e de todas essas porcarias…Tive de fazer tudo isso há anos. A minha mãe e o meu pai fumavam tanto que foram prematuramente para a cova. Procuraram o que tiveram, também. Cinquenta por dia, cada um deles. Quase lhes dei uma pá e lhes disse que começassem a cavar.”
Paul recostou-se na cadeira e olhou para Araminta. Estava outra vez a escrever no telemóvel.
“Tudo isto é fascinante, mas não faço ideia do que estou aqui a fazer” – disse.
Cliff encolheu os ombros. “Eu sei, pensava que vinha tomar um copo para namorar com a Minty e em vez disso dá com quatro patifes. É como aquele programa de televisão, como é que se chamava?” – olhando para os seus homens, à procura de ajuda e a receber olhares vazios – “Dragons Den. Tem de nos vender uma coisa e nós não queremos comprar.”
“Não estou a vender nada.”
“Oh! Acho que está. Olhe, estou interessado em si por causa da diferença entre o que diz que é e o modo como se comporta. Disse à Minty que trabalha em seguros. Mas atirou-se a mim como um polícia. Seguro de si. Mostrando os músculos. Pus-me a pensar – que intenções tem você com esta pobre rapariga? Qual é a sua jogada, hem? Qual é a sua jogada?”
Araminta estava agora de pé, a guardar o telefone e a alisar a frente do vestido. Paul reparou de novo em como era magra à volta das ancas, o que lhe tornava o estômago muito plano.
Cliff levantou o olhar para ela e disse: “O David está bem?”
Tirou uma mala creme do seu lugar nas costas da cadeira, dizendo: “Um bocado chateado comigo. Não o vejo há uns tempos.”
“Mantém-no a querer mais, querida. Os homens são todos iguais.” E, virando-se para Paul: “Não somos? Dão-nos um pouco e nós queremos mais. Estávamos a falar do namorado da Minty, caso estivesse curioso. Vê? Você não é o único galo na capoeira.”
Paul pôs-se em pé, empurrando a cadeira para trás e dizendo a Araminta: “Preciso de ir à casa de banho. Acompanho-a à porta.”
“Boa tentativa, mas não é preciso; vemo-nos por aí.”
Passou por ele sem olhar e ele sentiu brevemente o odor do seu perfume. Virou-se e seguiu-a, abrindo caminho por entre mesas onde homens com as suas mulheres e namoradas paravam para olhar para ela, olhando a seguir para ele.
Agarrou-lhe no braço, dizendo: “Minty.”
Ela virou-se, uma escuridão nos seus olhos. “Não me toque, porra.”
Largou-a. “Que se passa? Porque é que está no mesmo código postal que aquele bando de falhados?”
“Não tem nada a ver com isso.” Suavizou um pouco o olhar. “Lamento que estivessem cá quando apareceu.”
“Que quer ele? Porque é que anda à sua volta?”
Olhou-o fixamente. “Provavelmente pela mesma razão que você.”
Depois, virou-se e foi-se embora. Paul viu-a sair para o ar frio, abanou a cabeça e dirigiu-se às casas de banho. A pensar que entrara num filme cuja intriga não entendia e em que as personagens não faziam sentido.
Mais tarde, percebeu que era naquela altura que devia ter continuado a andar, afastando-se do bar o mais rapidamente que pudesse.

Estava a puxar o fecho das calças quando Tarzan e Gary entraram – o homem alto, até mais alto do que Paul pensava, a inclinar a cabeça sob a moldura da porta antes de a fechar e se encostar a ela, Gary a olhar em redor do espaço revestido a azulejos, assobiando e verificando os compartimentos.
Paul passou as mãos por água e pegou numa toalha de papel, perguntando a si mesmo o que iriam fazer. Nada de grave, pelo menos num bar movimentado, provavelmente apenas uma conversa para apalpar o terreno. Ele próprio o fizera quando era mais jovem, para perceber certas coisas.
Disse a Gary: “Ele Tarzan, tu Jane?”
Gary olhou para Tarzan – estás a ver, que é que eu te disse? Depois, apontou um dedo a Paul.
“A tua boca mete-te em sarilhos, não mete? Não consegues evitar. Estávamos a dizer, o Tarzan e eu, estávamos a dizer que a tua boca será a tua morte, um dia. Não é verdade, Tarz?”
Tarzan acenou afirmativamente com a cabeça, dobrando os braços para dar mais ênfase, a sua energia a mover-se lentamente, quase letárgico. Paul imaginou que ele tivesse força, mas não habilidade. Seria fácil incapacitá-lo, desde que se ficasse fora do seu alcance.
Gary era mais pequeno do que Paul, um homem rijo, de pele cinzenta e com um movimento constante atrás dos olhos. Não era de confiar nele para proteger a retaguarda e provavelmente era desejável tê-lo sempre à frente.
“Este sítio cheira mal. Podemos conversar lá fora?” – disse Paul.
“Isto não é nenhuma conversa” – disse Gary. “É um… como é que se chama, um exemplo.”
“De quê?”
“De como as coisas são. Entre nós e tu. Se vais andar a rondar a Minty, há regras.”
“E regulamentos” – disse Tarzan.
“Estás a dizer-me que preciso de autorização vossa para conversar com uma pessoa? Acham que isso vai acontecer? Nem sequer gosto muito dela. Não gosto de louras.”
Gary riu-se e olhou de novo para Tarzan.
“Não te preocupes, ela não é uma verdadeira loura, pois não?”
“Não. Bem lá no fundo, não” – disse Tarzan, fazendo Gary rir-se outra vez, partilhando os dois uma qualquer anedota privada.
“Mais alguma coisa?” – perguntou Paul.
“Sim” – respondeu Gary –, “ainda não acabámos. Para quem trabalhas?”
“Que queres dizer com isso?”
“Trabalhas nos seguros. Para quem trabalhas?”
Paul encontrou os olhos de Gary e fixou-os com os seus. “Não tens nada com isso.”
“Pois, pensei que ias dizer isso. A questão é que o Cliff quer saber se és o que dizes ser.”
“Ou…?”
“Não sei, essa parte ele não me disse.”
“Que diferença faz isso para ele? A companhia para a qual trabalho é em Londres.”
“Então não há problema em dizeres-nos, pois não?” Virou-se de lado e olhou para Paul com um ar interrogativo nos olhos. “A questão é que acho que ele te tem escalado para alguma coisa.”
“A resposta é não.”
“Pois, também pensei que dissesses isso. Por essa razão é que te arranjámos um pouco de incentivo.”

Quando o trouxeram de volta para o bar, Cliff estava ao telefone e mandou-os parar, com uma mão erguida, antes de se sentarem. Gary agarrou o braço de Paul, que se libertou, repelindo-o, mas mantendo-se de pé até Cliff acabar, apontando o dedo indicador ao botão de Terminar Chamada e carregando nele.
Agora Paul estava a ouvir Gary contar a Cliff o que acontecera na casa de banho, que Paul não dizia para quem trabalhava nem estava interessado fosse no que fosse que Cliff tivesse preparado para ele. Cliff acenava com a cabeça enquanto ouvia, apertando os lábios e absorvendo tudo como se estivesse a pensar a sério naquilo. Depois, apontou para a cadeira onde Paul se sentara anteriormente e Tarzan agarrou-o pelos ombros e empurrou-o para lá.
Paul perguntava a si mesmo o que as outras pessoas que estavam no bar pensariam daquele comportamento – talvez não tivessem reparado, mas também podiam estar habituadas a Cliff e aos seus homens e não ligarem. Talvez fosse o tipo de bar onde aquilo era um lugar comum, onde se partiam garrafas e se faziam ameaças todos os dias.
Paul não se preocupava com isso. Passaram algum tempo a sul do rio, em Londres, e conhecera pessoas por quem nem atravessaria a rua para lhes cuspir em cima. Uma vez, viu-se metido numa luta, embora estivesse fardado e a trabalhar com dois homens da esquadra: o homem que perseguiam, Terry “Pit Bull” James, sabia que ia ser preso mas queria, de qualquer modo, derrubar alguns polícias. Paul aprendera então a desferir os seus murros cedo e com força, sem esperar para ver por que caminhos ia a conversa e se o vilão se acalmava. Se se ficar à espera, é-se sempre ferido. Como então não sabia disso, esteve três semanas de baixa com um tímpano lesionado que ainda não estava bom.
Cliff dizia: “Tu não és dos seguros, eu sei, mas não sei o que és. Olha para ti, aí sentado, a olhar para mim com esse ar de reprovação e a perguntar a ti mesmo o que vem a ser isto.”
“Eu sei o que é isto.”
“Sabes? Então, diz-me. Eu digo-te que nota te dou na escala de 1 a 10.”
“Tu e estes tipos estão aborrecidos. Não estão a ganhar dinheiro – ou estão a ganhar pouco – e pensam que arranjaram alguém para azucrinar, alguém para os entreter. Pensam que estou a tentar saltar para a cueca da Araminta, pelo que acham que me têm, dalgum modo, agarrado. Como se eu fizesse o que vocês querem de modo a poder andar como aqui o Engraçado Número Três.”
“Facto interessante: o meu pai conheceu o pai do Terry Hall nos anos sessenta, sabes? Eu nunca o conheci. De qualquer modo, levas 8, o que não é mau para um principiante.”
“Falhei nas orgias de bêbados e nas tentativas de suicídio, não foi?”
“É engraçado dizeres isso. Uma vez, quase morri. Acidente de viação. Um idiota pisou a linha branca e estampou-se em mim, na Sewell Highway, logo a seguir ao bar de Devon, sabes? Parti uma quantidade de ossos e danifiquei o fígado, mas à parte isso não foi nada de muito grave. Por vezes, tenho dores de cabeça. De qualquer modo, quando estava lá no carro, todo feito num oito, pensei que ia morrer. Perguntava a mim mesmo se a ambulância chegaria a tempo ou se ia apagar-me lentamente. Não tinha dores, nem nada, provavelmente estava em choque. Mas desde então interesso-me pela morte, como será quando realmente formos desta para melhor. Dói, agarramo-nos com ambas as mãos ou é como ir dormir e não se sente nada? O resultado final é que já não tenho medo dela. Não quero morrer, mas arrisco. Eu era palrador com alguns dos outros presos, quando estava lá dentro, a trabalhar aquilo, a ver até onde podia levá-los antes que se atirassem a mim. Nunca se atiraram. Devem ter visto que não tinha medo deles, pelo que me deixaram em paz.”
“És um conversador interessante.”
“Tenho os meus momentos, não é? De qualquer modo, a pergunta que tenho para te fazer, homem, é se estás interessado em sacar algum. Algum papel extra.”
Agora estávamos a chegar à questão, pensou Paul. Até aí, Cliff tinha andado a disfarçar, de modo a apalpar o terreno antes de se comprometer.
“Não dizes nada” – afirmou Cliff. “Não ouço barulho nenhum vindo da tua boca. E eu não sou telepata. Então, que dizes?”
“Que queres que diga?” A ser conciso, a obrigar Cliff a fazer o trabalho.
“Não terias de fazer nada. Só dar a tua opinião de profissional. Dar uma vista de olhos a uma coisa e dar uma opinião. A opinião dum homem dos seguros.”
“Se eu for um homem dos seguros.”
“Também há isso. Seria uma espécie de teste, não é?”
“E pagam-me?”
“Foi o que eu disse, não foi? Uma quantia a decidir.”
Paul olhou para Tarzan e Gary que o fixavam agora com o seu olhar de psicopatas. Percebeu que o Holandês desaparecera desde que saíra da casa de banho – não tivera saudades dele.
Cliff pegou no telefone.
“Vou assumir o teu silêncio como um sim. Portanto, agora podes pôr-te a andar. Tenho coisas a fazer.”
De repente, o foco na sala mudou, como se Paul já não estivesse lá. Tarzan e Gary começaram a conversar um com o outro e Cliff estava a ver as mensagens no seu telefone, os olhos a percorrerem-nas com a velocidade dum corretor clandestino de apostas a avaliar probabilidades.
Paul levantou-se e saiu, perguntando a si mesmo se eles chegariam a reparar que, à semelhança do Holandês, também ele se fora embora.

CAPÍTULO CINCO
Uma banana servira-lhe de almoço e começara a comer um kiwi quando Cliff ligou, irritado como habitualmente, a voz a tornar-se estridente e exigente quando perguntou quanto tempo mais ia arrastar aquela coisa com David até começar a compensar.
Quando Janice era mais jovem, deixava os empregos à primeira vez que alguém lhe levantasse a voz – era coisa que não conseguia suportar, pois tivera disso em casa com fartura, vindo do pai. Este fora um tirano para os rapazes de Dalkeith, trabalhando em obras com uma pá de cabo curto que trazia para casa, para ameaçar a mãe dela e as três irmãs, e levantando a pá ao primeiro sinal de qualquer desacordo.
Uma manhã, com uns dezassete anos determinados e não querendo vergar-se mais, levantara-se cedo, chamara um táxi, levara a pá para o quintal e acendera uma fogueira por baixo dela. Na altura em que o pai vinha a berrar pela escada abaixo, de t-shirt e calções, já ela tinha batido com a porta da rua e dito ao motorista que a levasse à estação de Waverley, em Edimburgo, onde comprou um bilhete de ida para Londres, perguntando a si mesma o que ia fazer com as setecentas libras que poupara a trabalhar na Padaria Greggs dois dias por semana, mais as duzentas que roubara da lata de chá onde o pai guardava o dinheiro para a bebida.
Ficou durante duas semanas em casa da sua tia Glinnie até encontrar emprego no escritório dum solicitador em Twickenham e, depois, alugou um apartamento por cima duma companhia de seguros enquanto trabalhava no seu plano. O solicitador estava a sair-se bem e queria alguém perspicaz para trabalhar na receção. Como toda a gente, ela sabia datilografar porque usava computadores desde que andara na escola, e não precisou de se esforçar muito para controlar o idoso.
Já sabia que era esperta e não se importava de mentir às pessoas, pelo que, enquanto atendia clientes e datilografava testamentos durante o dia, começou a trabalhar em linha à noite, tendo iniciado então as fraudes na internet, usando nomes e fotografias falsos em sítios de encontros, afirmando apaixonar-se por uma série de tipos de meia idade por e-mail e concordando em encontrar-se com eles… desde que mandassem primeiro o dinheiro para a viagem.
Mais tarde, comprou uma lista de e-mails em CD a um lituano num clube noturno e mandou milhares de e-mails a propor pagamento a quem quisesse trabalhar de casa, processando pedidos de indemnização às seguradoras. Só tinham que mandar um cheque para cobrir o custo da engenhoca a laser que verificaria o número do pedido e seriam remunerados por cada centena de processamentos. Os cheques iam para uma caixa postal onde os levantava duas vezes por semana para depositar numa conta aberta sob nome falso.
Nessa altura já tinha aprendido a fazer sítios da web rudimentares com Dreamweaver, criando o Naturograin.com, usando imagens de suplementos vitamínicos que encontrou em linha para oferecer um espantoso produto que evitava o cancro a um preço muito baixo se comprassem na hora seguinte. Começou a entrar dinheiro vindo de todo o mundo e trocou o seu apartamento de uma assoalhada por algo mais espaçoso, melhorando ao mesmo tempo o seu guarda-roupa e comprando o primeiro carro, um VW carocha amarelo.
Passados uns anos deixara o solicitador e geria meia dúzia de sítios na web que vendiam produtos falsos e perguntava a si mesma o que fazer a seguir.
Foi então que alguém lhe disse que a polícia começava a interessar-se.
Tivera sempre sorte e uma noite conheceu Robbie, um homem interessante que era polícia, mas também um geek que trabalhava numa divisão criada para investigar o tipo exato de fraudes a que ela se dedicava. Primeiro, ele não sabia como ela ganhava o seu dinheiro, mas ao cabo de três meses de estarem juntos ela disse “que se lixe” e contou-lhe – numa altura em que ele já estava demasiado envolvido para deixar de andar com ela. Um mês depois mencionou que os nomes dos sítios dela na web tinham aparecido num memorando e que ela ia ser “examinada”.
Nessa noite, embalou os seus três computadores.fez umas malas de roupa e tomou um táxi para a estação de Euston, onde apanhou o comboio seguinte para norte. Coventry era a primeira paragem e o revisor ajudou-a a descarregar a bagagem para a plataforma. Recomeçou, desta vez como Araminta Smith, jornalista.
A única coisa que lamentava era ter deixado ficar o seu VW amarelo.

Agora Cliff começava a ficar preocupado com uma tarefa de longo prazo em que ela estava a trabalhar havia meses, acusando-a de estar a acobardar-se, não querendo puxar o gatilho. Com o telefone encostado à orelha, viu a sua cara enrugada, os lábios a adelgaçarem-se, os olhos frios, com os pés de galinha a escurecerem quando lhe disse que se mexesse e fizesse aquilo funcionar.
“A altura ainda não é boa” – disse ela –, “ele está sob pressão no trabalho, há inspetores no escritório – olha, porque é que não deixas isto comigo enquanto andas por aí com os três mosqueteiros? Se precisar de conselhos, peço.”
“Não me esqueço de quando me falaram pela primeira vez, dizendo que achavam que eu era ótima e que constituiríamos uma equipa magnífica. Só tinha que vos ajudar a lançarem-se, dar-lhes alguma credibilidade de modo que o vereador entrasse? Já se esqueceram disso tudo? Dos pequenos favores?”
“Está bem, já fizeste o teu trabalho, deixa-me fazer o meu. Ele já está a ser agarrado. Não sabe mas já tem o anzol na boca.”
“Agora, vocês foram e meterem nisto esse grande gajo, o Storey; que merda é esta?”
“Ele tem potencial, não tem? Não viste?”
“Ele é astuto, não é franco. Acha que está a enganar-nos, mas eu tenho-o guardado para uma coisa.”
“Lá estás tu” – disse ela. “Eu não estava enganada. Vigia-o.”
“Oh! Estou a vigiá-lo, está bem. Vou vigiá-lo muito atentamente. Então, quando é que o David se estreia?”
“Em breve, daqui a dias. Precisa de mais algum trabalho de sapa. Ainda não confia em mim. Até breve.”
“Não desligues. Ainda não acabei.”
“Isso é problema teu, Cliff, nunca acabas de falar. Comigo, não te calas – com as outras pessoas, não te calas. Tomara eu ter um cêntimo por cada palavra que te sai da boca.”
“Um dia, lamentarás não me teres prestado mais atenção. És demasiado impetuosa, nunca pensas nas coisas. Mete-te em merdas de que não consigas sair.”
“É a vida real, Cliff” – sentindo aumentar a sua ira –, “não é uma telenovela.”
“Que diabo quer isso dizer? Estás a passar-te?”
“Significa que não vou sentar-me à espera que as coisas venham ter comigo. O meu pai era um chato, mas pelo menos tinha um rumo, sabia o que queria. Não ficava sentado a ver os outros obterem aquilo que ele não conseguia ter. Ia ele arranjar. Era demasiado estúpido para fazer bem as coisas, mas pelo menos tentava.”
“Pensas demasiado em ti, rapariga. És uma trapaceira à procura de resultados, mais nada. Não te armes tanto em boa.”
“Se eu não o fizer, quem o fará?”
Desligou antes que ele tivesse tempo de ripostar. E não queria a opinião negativa que Cliff tinha dela a martelar-lhe a cabeça logo naquela altura.
A questão é que Cliff a pusera outra vez a pensar em Paul Storey.
E se, em princípio, não estava contra, ainda não tinha a certeza se ele era divertido ou um impertinente. E isso incomodava-a.

CAPÍTULO SEIS
O seu encontro com Frost desencadeara alguma coisa – havia uma visita na semana seguinte e a perspetiva doutra, se conseguisse persuadi-los de que a zona era boa. Paul sentiu um aperto no estômago perante a ideia de a casa ser mostrada a estrangeiros, mas sabia que tinha de deixar andar. Já nem sequer vivia naquele local há perto de vinte anos; então, que é que o preocupava?
Enviou uma resposta a Frost, dizendo que podia estar em casa, se quisesse. Senão, saía do caminho. Não queria conhecer os potenciais compradores se pudesse passar sem ele – Frost que ganhasse o seu dinheiro.
Recostou-se na cadeira e fechou o computador. Tinha a sorte de ainda ter sinal wi-fi, pois o pai era uma pessoa que estava sempre a comprar engenhocas novas e tratava a internet como uma criança à solta numa loja de brinquedos. Paul encontrara uma câmara digital nova, um gravador de televisão com disco rígido, um par de binóculos digitais e vários outros pequenos aparelhos elétricos que devia achar úteis. A internet estava paga até ao fim do mês e depois disso havia de descobrir outro sítio onde se ligar.
Pusera o computador em cima duma mesa em frente da janela por onde podia olhar diretamente para o relvado que ficava para lá do jardim, um pedaço de relva tratada pela Câmara que servia de recreio para as crianças locais e, nalguns sítios, para os cães vadios fazerem as suas necessidades. Saía-se pela porta da frente, descia-se um pouco e atravessava-se esse pedaço de relva maltratada para chegar à rua e ao carro. Um par de jovens adolescentes estava a chutar uma bola para trás e para diante entre eles, a gritar uns para os outros e a fazer de conta que eram jogadores dum encontro que tinham visto na TV.
Paul lembrava-se de ter feito o mesmo – meu Deus, já há quase trinta anos, o seu companheiro era o Johnny Hall, lá da rua, embora preferisse mexer em bicicletas, sujando as mãos de óleo a apertar uma corrente ou a substituir uma roda. Paul já então tinha boa coordenação e chegou à equipa de râguebi da escola, apanhando um autocarro para a escola nas manhãs frias de sábado e subindo para uma carrinha branca a cair aos bocados que o levava às escolas chiques – King Henry VIII, Bablake, e por vezes até mais longe, fora da cidade. Depois, aos dezassete, dezoito anos, após o jogo e ter sido deixado na escola, um grupo ia ao bar mais próximo e sentava-se em silêncio, de costas para a parede, enquanto os fanfarrões mentiam acerca de sexo e das várias teorias da conspiração relativas a extraterrestres em que acreditavam.
Perguntava a si mesmo como é que as pessoas o veriam agora, regressado do Smoke (Londres – N. do T.) com o rabo entre as pernas, sem emprego, com a reputação perdida, sem amigos na terra, com exceção daquele bando de falhados onde aterrara. De certo modo, estava satisfeito por o pai ter morrido antes que tivesse de se entender com ele. O problema em Londres rebentara quando estava no hospital e Paul conseguira esconder-lhe as novidades. As poucas notícias que eram dadas não o identificavam como o agente em questão e ele não estava para tornar os últimos dias do pai ainda mais infelizes do que já eram.
O problema era dele e tinha de o engolir e seguir em frente, em vez de fazer daquilo uma grande coisa.
Pegou no telefone e selecionou o número de Millie; queria ligar, mas não ligou; era demasiado cedo, desde a última conversa. Não queria que ela pensasse que estava dependente dela ou que não conseguia governar-se sem alguma aprovação dela. No entanto, devia ir visitar Rick, mantê-lo ao corrente e fazer com que deixasse de incomodar os seus amigos, batendo-lhe à porta.
Estava a olhar para o ecrã quando o telefone fez soar o seu estranho pipilar eletrónico.
Era aquela voz escocesa fixe da Araminta a falar com ele como se o conhecesse desde sempre e lembrou-se da luta que tivera para a fazer aceitar-lhe número, perguntando na altura a si mesmo se ela alguma vez o usaria.
“Queria ver o que estavas a fazer e pedir-te um favor” – dizia ela.
A pô-lo do seu lado, pensou ele – nunca tinha mostrado qualquer interesse nele até então; portanto, porquê agora? Era como se agisse automaticamente – atua como se estivesses interessada em alguém e depois estás autorizada a pedir um favor.
“Vocês são muito exigentes” – disse ele; “continuam a querer que lhes faça coisas. Quem sou eu, afinal, o novato dos criados?”
“OK, ótimo, tu é que andavas a rondar, pensei que talvez apreciasses a proposta. Até qualquer dia.”
“Que é que queres?” – perguntou ele, pondo algum enfado na voz, embora estivesse realmente intrigado e quisesse voltar a vê-la.
“Não sejas tão empertigado. Tens carro, não tens?”
“Porquê?”
“Quero que me leves a um sítio esta noite.”
“Vais entrevistar alguém acerca desta corrupção toda?”
“Podes fazer isso ou não? Uma resposta simples, sim ou não.”
Não podia dizer se ela estava a ficar zangada ou não – aquele tom parecia ser o seu registo normal; portanto, não reagiu.
“O Cliff ou um dos do grupo não podem levar-te?” – perguntou ele, a ganhar tempo.
“Se eu quisesse que um deles me levasse, tinha pedido, não era?”
“É difícil dizer. És tão diplomata...”
Antes que ela respondesse, perguntou aonde iam e ela disse-lhe que era perto de Coundon, junto à Holyhead Road. Paul estivera lá no batizado do seu primo Derek quando era adolescente, mas não conhecia a zona. Sabia que havia um retail park onde fora a velha fábrica Alvis porque o pai lhe dissera que tinha lá comprado um frigorífico na Comet, antes de ter ido à falência. Tinha uma vaga ideia de que a Alvis fazia tanques para o exército antes de ser vendida.
“Apanha-me onde nos encontrámos na outra noite” – disse ela. “Às sete.”
“Tenho de levar alguma coisa?”
“Não.”
“Então, que vamos fazer?”
“Achei que talvez gostasses de conhecer o meu namorado” – disse ela.

CAPÍTULO SETE
Viu-a na berma da estrada antes de chegar e encostar, reparando que trazia outra vez um traje diferente – as leggings com desenhos vivos que via muitas mulheres usar, uma grande paxemina creme, pendendo como um poncho, diagonalmente, do pescoço e uma mala de mão branca, lisa, ao ombro. Ao subir para o lugar do passageiro, parecia mais jovem e fresca, como se fosse a um primeiro encontro e não soubesse o que esperar. Paul estava a ficar nervoso e impôs a si mesmo que se controlasse.
Quando se afastou do passeio, ela olhou ao redor do carro, um Volvo 60 com dez anos, turbo diesel, e pareceu-lhe que estava a avaliar o carro e o seu gosto. Sentiu o cheiro do seu perfume, o mesmo de antes. Havia ali frutos mas também algo de madeira, mais abrasivo.
Agora ela estava a ver o porta-luvas, remexendo as suas caixas de pastilhas elásticas, uma minilanterna e alguns pedaços de plástico dum suporte de GPS que se tinha partido.
“Estás à procura dalguma coisa em particular?” – perguntou ele.
“Pensei que talvez descobrisse alguma coisa a teu respeito. Passaporte, Carta de Condução ou qualquer coisa assim.”
“Não há nada para saber.”
“És o homem mistério?” Disse aquilo com o sotaque escocês que, quanto mais ele a conhecia, mais se notava. “Apareces um dia no Starbucks e a seguir descobrimos que já sabes todos os nossos segredinhos sujos, enquanto nós não sabemos porra nenhuma de ti.”
“Que é para ti o Cliff?”
“Não o que ele quer ser.”
“E o que é isso?”
Olhou-me com um olhar bobo: “Usa a tua imaginação.”
“Então, tu és uma brilhante jornalista e ele é o quê? O patife da terra? Para que é que andas com ele?”
“Ganhar crédito na rua. Bilhetes para concertos. Drogas duras. Muitas coisas criminosas.” A provocá-lo, ele sabia, nem sequer de modo gentil: na realidade, não se importava com o que pensasse.
“Quando eu andava na escola” – disse –, “ele era alguém de quem devia afastar-me. Havia dois – ele e outro rapaz, um pouco mais velho, Wigton. Sempre em lutas, ambos. Se bem me lembro, Cliff piorou com a idade, enquanto o Wigton se organizou e passou a estudar muito.”
“Há uma moral nessa história?”
“Achei interessante e lembro-me de pensar nisso mesmo em criança. Via-se o caminho que seguiriam aí aos treze, catorze anos.”
“Que aconteceu ao Wigton?”
“Foi atropelado na rua na véspera do seu último dia de escola. A jogar futebol, foi atrás da bola, um carro fez a curva e atirou-o contra um poste de iluminação. Partiu-lhe o crânio.”
“Então, não sabes o que lhe aconteceria mais tarde. Podia ter voltado ao que era.”
Paul encolheu os ombros. “Talvez. Mas estava a transformar-se numa pessoa diferente. E depois, não pôde.”
Ela dava-lhe as indicações e passou por Gosford Green, onde jogara ténis quando era miúdo, embora os courts tivessem desaparecido há muito – era agora um recreio infantil –, virando à direita na circular e saindo a seguir para se dirigir a Holyhead Road.
Mandou-o virar à esquerda na garagem da Texaco e de repente as casas passaram a ser mais imponentes, recuadas em relação à estrada, estacionamento à frente e arcos de pedra por cima das portas de entrada.
“Aquela” – disse, apontando, e ele abrandou até parar. Abriu a porta e olhou para ele. “Vens?”
“Que devo dizer-lhe? Quem sou eu? O motorista?”
“Não te preocupes, ele não é do tipo ciumento. Acho que vais gostar dele.”

Quando David abriu a porta e recuou para os deixar entrar, Paul olhou bem para ele. Era mais ou menos da sua altura, pálido, com o peito afundado, barba e cabelo da cor de palha suja. Paul imaginou que trabalhasse dentro de casa, que talvez fosse jornalista, como a Araminta dizia ser.
Ela fez uma apresentação rápida, acenando com uma mão para Paul, como se David não tivesse reparado que ele tinha entrado.
“Não te preocupes com ele” – disse a David –, “é uma pessoa que conheço e me trouxe cá.”
David chamou a atenção de Paul, mas ali não havia nada, ou talvez apenas uma vaga curiosidade, Paul certamente a pensar que ele estaria aborrecido ou zangado por a namorada aparecer com outro homem.
Paul viu que a casa era grande mas não parecia habitada – espreitou pela porta aberta duma sala sem tapetes, com papel de parede liso mas nada mais, nem mobília nem quadros nas paredes. Cheirava a uma espécie de produtos de limpeza com aroma de pinho, como se David tivesse andado a esfregar as tábuas do chão antes de aparecerem.
Agora David levava-os até uma divisão das traseiras, reparando Paul nas grandes janelas panorâmicas que mostravam um jardim de tamanho razoável, bem arranjado, com um barracão ao fundo e luzes solares a bruxulear nos canteiros de flores. Talvez passasse mais tempo lá fora do que dentro de casa, pensou Paul, a podar rosas ou fosse o que fosse que fizessem aos jardins.
Araminta sentara-se num sofá preto de pele e Paul sentou-se à frente dela, enquanto David lhes perguntava se queriam café ou chá, ou alguma coisa mais forte, tendo ambos dito que não.
Achava que David tinha o ar dum tipo submisso, pelo que ficou surpreendido quando disse a Araminta, de modo direto: “Que faz ele aqui? Que é isto? Disseste que era importante.”
Ela escondeu as mãos no colo, ganhando tempo, e depois levantou a cabeça, olhando para ele. “O Paul é um colega, está bem? Pedi-lhe que me trouxesse cá. E é verdade que tinha de te ver esta noite.” Virou-se e olhou para Paul. “Podes dar-nos um minuto? Vai inspecionar a cozinha, ou algo assim.”
Sem lhe dar opção, a menos que ele quisesse iniciar uma discussão sem sentido.
Deixou-os, fechando a porta atrás de si, e experimentou outras duas portas até abrir uma que dava para um escritório – estantes, uma mesa com um computador, um candeeiro de secretária articulado e uma cadeira estofada com rodas. Sentou-se na cadeira e olhou pela janela que, por algum truque da planta, dava uma perspetiva da frente da casa. Lá fora estava escuro, pelo que pouco conseguia ver, com exceção de algum carro que passasse na rua principal.
Teve uma ideia e virou-se para olhar para as fotografias que estavam na parede. Fotos de David em criança, depois uma com a família – ele, uma rapariga que presumiu ser a irmã mais nova, e os pais, mais um cão preto, todos de pé em frente duma casa coberta de hera, com colunas de ambos os lados da porta de entrada. Parecia que podia ser em Oxford ou num dos Condados Domésticos. Classe e dinheiro.
Mais adiante, um par de diplomas emoldurados, um do Nível 8 em piano, outro por ter vencido um rali automobilístico em África; talvez fosse mais duro do que parecia.
Dez minutos depois ouviu abrir-se de novo a porta do salão e saiu para o vestíbulo, vendo Araminta e David a sair com um aspeto diferente, como se tivesse havido alguma espécie de experiência de conversão enquanto estivera ausente. Araminta sorria, descontraída, tendo a sua linguagem corporal perdido a tensão habitual. Entretanto, David estava branco, as bochechas chupadas, parecendo que envelhecera dez anos.
Paul disse para consigo que no futuro teria de ter mais cuidado – aquela mulher podia ter um efeito traumatizante na saúde das pessoas.
Araminta virou-se para ele, dizendo: “Pronto?”, como se estivessem para ir para uma volta de domingo à tarde, e dirigiu-se à porta. Paul viu a expressão de David tornar-se ainda mais abatida, enquanto a seguia com os olhos.
Ouviu David perguntar: “Então, continua combinado para amanhã à noite? As fotografias?”
Araminta fez-lhe um aceno de despedida com a mão. “Não deves esperar ver-me durante alguns dias, mas isso não quer dizer que te esqueças do que te disse. Está bem?”
“Suponho que sim.”
“Anima-te. Não será tão mau assim.”
“Estou a pensar em ti.”
Fuzilou Paul com um olhar cujo significado ele não percebeu. E disse a David: “Não penses em mim. Pensa no que eu te disse.”
Abriu a porta e saiu sem olhar para trás, afastando-se da casa pelo caminho que levava ao portão. Paul acenou a David com a cabeça e seguiu-a, fechando a porta atrás de si. Não duvidava de que acabara de ver ser combinada alguma coisa, mas não sabia o quê.
Araminta já estava ao telefone, do outro lado do portão. Foi uma chamada curta e, quando acabou, virou-se para ele, dizendo: “Não tens de me levar a casa. Chamei um táxi.”
“Para quê?”
“Não te ponhas a fazer-me perguntas. Preciso de algum tempo sozinha, está bem?”
Paul pensou que talvez ela não quisesse que soubesse onde vivia.
Ficou ali com ela, a sentir a noite arrefecer à volta deles.
Disse: “Não tens de me dizer o que aconteceu ali dentro.”
“Ainda bem.”
“Mas tenho de saber – ele é mesmo teu namorado? Da maneira como o tratas, como um miúdo?!”
“Ele não se incomoda tanto como tu.”
“Como sabes?”
“Tu viste-o – tem um ar um bocado molengão mas é direto. Se tivesse um problema com qualquer coisa dizia-me ou livrava-se de mim”
“Não pareces muito preocupada.”
“Porque é que havia de estar? Há mais Marias na terra, et cetera.” Parecia cansada e talvez começasse a ressentir-se com as perguntas dele.
“Pergunto a mim mesmo como ele se sentirá neste momento” – disse Paul.
“Não percebes nada disto.”
Estava a tentar acabar com a conversa, pensou Paul, não gostava que lhe fizesse perguntas sobre o outro homem.
“Então, porque é que quiseste que eu viesse?” – perguntou, sentindo-se agora irritado com ela e querendo abalar a sua confiança.
“Achei que devias conhecê-lo.”
“Convencer-me de que tinhas um namorado para eu não ter muitas esperanças.”
Virou-se para ele e, por uma vez, o seu olhar era direto, até divertido. “Tens esperanças? És estúpido.”
Ele não sabia o que responder, pelo que abanou a cabeça, deu alguns passos como se estivesse à procura do táxi dela e depois virou-se para trás e viu-a a consultar as mensagens no telefone. Nunca largava a tecnologia. Perguntava a si mesmo se David estaria a observá-los da janela da frente e logo que lhe passou isso pela cabeça soube que era verdade. Fez um esforço para não verificar.
“Que é que faz o David?” – perguntou.
Ela levantou os olhos do telefone. “Estava a perguntar a mim mesma quando virias com essa. És obcecado pelo que as pessoas fazem, pelo modo como ganham dinheiro. Nunca te deixas ir simplesmente ao sabor da corrente, pois não?”
Paul pensou naquilo por um momento e não conseguia negar. Mas disse para consigo que era por ser naturalmente curioso em relação às pessoas, e não por ser abelhudo. “Talvez tenhas razão, mas não respondeste à pergunta” – disse.
“Trabalha para a Câmara que estou a investigar por corrupção. Contacto europeu, a arranjar dinheiro para cidade, daquele espólio todo de Bruxelas. Chega, como resposta? Graças a Deus, cá está o táxi. Tenho as mamas geladas.”

Paul viu o táxi afastar-se e, quando dobrou a esquina, regressou ao caminho e bateu à porta de David, perguntando a si mesmo que diabo estava a fazer e se tinha alguma coisa a ver com aquilo.
Quando David abriu a porta, Paul avançou, tornando claro que queria entrar, e o outro homem deu um passo tímido atrás. Paul entrou sem saber o que ia dizer, mas sabendo também que alguma coisa havia de sair.
David estava a olhar para ele, endireitando-se como que a tentar impor-se um pouco naquela situação, tentando afirmar-se.
Queria, sabe, pedir desculpa por ela. Pediu-me que viesse com ela esta noite mas não sei para quê” – disse Paul.
David estava a olhar pelo vidro martelado da porta de entrada, como se pudesse ver a sombra dela aparecer.
“Onde está ela? Foi-se embora?”
Paul reparou que ele tinha agora óculos, que lhe davam um ar de professor de geografia ou de arquivista. Não tinha mais de trinta anos e Paul perguntava a si mesmo quando arranjara tempo para participar em ralis automobilísticos africanos.
Disse a David que Araminta apanhara um táxi e, a seguir, voltou para o salão. Olhou em redor, à procura de sinais do que acontecera depois de lhe terem pedido que os deixasse a sós.
“Desculpe, que é que queria?” – perguntou David.
“Achei que ela tinha sido grosseira consigo. E quando vocês os dois saíram e se encontraram comigo no vestíbulo, você estava com ar de quem tinha sido atropelado por um camião. Não quero ser muito cruel, mas ela deixou-o?”
David franziu o sobrolho, sentou-se numa cadeira de braços com flores estampadas e inclinou-se para ele, enquanto Paul se sentava à sua frente, pensando que também devia pôr-se à vontade se iam ter uma conversa de homem para homem.
“Não, claro que não me deixou” – disse David. “Não é que você tenha algo a ver com isso.”
“Acontece-me muito.”
“Trabalha com ela, não é?”
“É um arranjo recente.”
“Então, sabe.”
“Sei o quê?”
“Foi por isso que ela veio cá falar comigo. E suponho que você era o apoio moral, caso ela precisasse.”
Paul não conseguia compreender o que estava a ouvir. Sabia que aquilo ia ser o núcleo da questão, o âmago da fraude, mas ainda não compreendia por que razão ela o tinha trazido consigo. Não havia maneira de poder dar-lhe qualquer apoio moral quando, desde logo, não tinha a certeza de que Araminta tivesse alguma moral.
“Que lhe disse ela?” – perguntou.
“Sabe, acerca do cancro.” David fixou o olhar na cara de Paul. “Oh! Talvez você não soubesse. Foi estupidez minha, agora dei com a língua nos dentes.”
Paul achou melhor não dizer nada, pelo que se limitou a olhar para o outro, que estava com o rosto branco como a cal.
David prosseguiu: “Bem, agora é tarde demais. Ela tem um cancro agressivo no pâncreas. Normalmente, não duraria muito, mas está inscrita num programa experimental que custa uma fortuna e está muito em segredo.”
“Que quer dizer com esse ‘em segredo’?”
David molhou os lábios. “Ela recomendou-me que não dissesse a ninguém, mas agora suponho que consigo já não vale a pena. Diz que está a ser desenvolvido em conjunto por uma empresa privada e pelo Ministério da Defesa. Não me pergunte porquê. De qualquer modo, envolve tecnologia genética e ninguém sabe de nada a esse respeito.”
Paul sentiu que estava de olhos esbugalhados mas não podia fazer nada. Para dizer alguma coisa, perguntou: “Que espécie de tratamento?”
David encolheu os ombros, evasivo, talvez a pensar que dissera demasiado. Mas acrescentou: “Só sei que é praticamente um segredo oficial e que ela vai estar inativa durante seis meses.”
“Ela disse-lhe isso tudo esta noite, nos dez minutos em que estive na porta ao lado?”
“Era como se tivesse um guião, não me deixava interromper, foi por ali fora do princípio até ao fim. Mostrou uns documentos que pareciam suficientemente oficiais.”
“E você acredita nela?” Tentou manter o cinismo ausente da voz.
David ignorou a pergunta. Disse: “Uma pena, na realidade, porque ia levá-la a visitar a minha mãe e a minha irmã na próxima semana. Sabem da existência dela, mas ainda não a conhecem. Ia fazer-lhes uma surpresa.”
“Onde vivem elas?”
“Em Kenilworth, não muito longe daqui. Devia lá ir com mais frequência, mas elas estão felizes assim. Não quero interferir.”
“Devia passar mais tempo com os seus pais. Acredite, eu sei o que estou a dizer.”
“Você não conhece a minha mãe. Depois de o meu pai morrer, endureceu. Não creio que ela goste muito de homens. Sobretudo desde o que o meu pai lhe fez. Não me pergunte o que foi, pois não lhe direi.”
Paul a pensar que não queria saber, que não queria envolver-se na história doutra pessoa. Ainda andava a lidar com a sua. Levantou-se, dizendo: “Tenho de ir.”
David também se levantou, perguntando: “Acha que ela ficará bem?”
“Diga-me uma coisa: afirmou que o tratamento ia custar uma fortuna. Quem vai pagar?”
“Ela não disse.”
“Não disse?”
“Não, só disse que vai estar um tempo inativa. O jornal só a apoiará durante um par de meses, o que é justo. Depois, fica falida.”
“Há quanto tempo a conhece?” – perguntou Paul.
“Sei aonde quer chegar – você é um tipo desconfiado, não é? Está assim desde que o deixei entrar. Não nasci ontem, sabe? Você acha que, só porque pediu que lhe emprestasse algum dinheiro, ela é uma exploradora.”
“Já pediu?”
“Só para se desenrascar, quando as poupanças dela acabaram. Ofereci-me para a acolher aqui mas não quer nem ouvir falar nisso. Acho que é bastante tímida, reticente, na verdade. Não se quer impor a mim. Eu sei que parece dura mas lá no fundo é uma rapariga doce.”
Paul fez uma pausa. Depois, disse: “Se fosse a si, esperava um pouco antes de lhe emprestar fosse o que fosse. Veja como correm as coisas.”
“Uns milhares aqui ou ali não vão levar um banco à falência. Veja esta casa. Um tio deixou-ma em testamento. Completamente paga, mais qualquer coisa. Posso dar-me a esse luxo.”
“É isso que receio. Vou dar-lhe o meu número de telefone.”

CAPÍTULO OITO
Embora a casa estivesse em boas condições, um dos quartos precisava de arranjos. Assim, na manhã seguinte Paul comprou uma lata de magnólia e pintou por cima do papel de parede estampado que o pai colocara cerca de trinta anos antes.
Passara algum tempo a pensar em David e no que Araminta lhe estava a fazer. E também perguntara a si mesmo onde entrava Cliff naquele quadro, se é que entrava. Pensou em Cliff e nos seus três comparsas sentados pelos bares e cafés, a magicar esquemas de enriquecimento rápido, a vender objetos roubados sem importância em vendas de rua ou em lojas de troca por dinheiro, à procura da sorte grande. Perguntava a si mesmo até que ponto eles eram sérios, se devia dizer alguma coisa a Rick acerca deles, apanhá-los numa lista qualquer, ver se eram conhecidos dos polícias de Coventry. Do que Cliff disse, estavam a preparar-se para um trabalho e Paul duvidava que esse trabalho em particular envolvesse Araminta. Provavelmente era algo sujo que exigia mais mãos na massa.
Já vira que Araminta geria a sua própria fraude, pondo David a jeito para dar dinheiro destinado a apoiá-la enquanto estivesse alegadamente desempregada. Mas perguntava a si mesmo se era tudo. Talvez houvesse outra parte. David era um pouco estúpido e talvez pouco experiente, vivendo sozinho numa casa inacabada que lhe fora deixada por um parente. Talvez fosse presa duma mulher atraente que o mantinha pelo beicinho, que não entrava numa relação estável, mas lhe acenava sempre com a promessa de gratificação. Estava a ver Araminta a fazer isso, manipulando-o da mesma maneira que o manipulara a ele, a princípio. Conhecendo o seu poder e sem amolecer, esperando ser obedecida. Ele próprio conhecera mulheres assim e quase voltara a cair nessa com ela antes de ter reparado no seu comportamento – o sorriso pronto, a aceitação do insulto casual – e saiu.
Ou talvez Cliff a tivesse envolvido com David e tudo fizesse parte dum plano maior, envolvendo todos eles. Talvez isto fosse o mais longe que iam – defraudar um solteirão solitário para lhe sacar as poupanças. No bar, Cliff perguntara como estava David, pelo que obviamente o conhecia ou, pelo menos, sentia-se à vontade para lhe fazer a pergunta. Paul podia imaginar Cliff a trabalhar David da mesma maneira que o trabalhara a ele: dizendo que conhecia alguém de quem David gostaria, uma mulher atraente, uma profissional liberal, alguém com miolos com quem te vais dar bem… Mas isso podia não ser assim, não é?, pois ela dissera que David trabalhava para a Câmara e ela estava a escrever uma coisa acerca da Câmara, sobre corrupção – sim, devia ter sido esse o bilhete de entrada dela: uma chamada telefónica para o seu escritório – ouvi dizer que você é uma pessoa séria, David, e que posso confiar em si. Portanto, fale-me das trapaças que se passam à porta fechada na Câmara Municipal…
Ainda estava a pensar em Araminta quando o seu telefone tocou e não ficou surpreendido quando a voz dela apareceu na linha.
“Que disseste ontem ao David?”
“Tens uma bela maneira de iniciar conversas” – disse ele.
“Não me fodas, Paul. Que disseste? Voltaste atrás e falaste com ele, não foi?” Verdadeiramente aborrecida com ele.
“Não podes criticar-me por querer falar com o tipo, da maneira como me empurraste de lá para fora. Que é que era suposto eu ser? Um galã para lhe fazer ciúmes? Posso perceber a razão de me escolheres a mim, mas não me deste a oportunidade de brilhar.”
“De que porra estás tu a falar?” – disse ela, carregando bem nas palavras, ansiosa por falar. “Ele telefonou-me esta manhã e disse… disse que não ia fazer o que lhe pedi.”
“Emprestar-te dinheiro?”
“Não tens porra nenhuma a ver com isso. Envenenaste-o, não foi? Que lhe disseste?”
”Nada. Um conselho amigável. Depois de lhe teres falado no cancro, achei que ele precisava disso.”
Agora ela estava calada e ele sabia que estava a preparar-se, a analisar potenciais caminhos, a pensar no que sabia dele e no que podia funcionar.
Disse ela, com uma voz menos confiante: “Levei-te lá porque pensei que eras um amigo. OK, então é por aí, pensou ele. “Eu sabia que o que tinha a dizer o tocaria muito, podia precisar de algum… algum apoio de retaguarda.”
“Estou a ver o teu raciocínio… vais dizer-lhe algo tão devastador que ele podia precisar de encosto; portanto, levas contigo um completo estranho. Que é que poderia correr mal?”
“Não o conheces. Ele precisa de apoio, de alguém em quem confie. Tu és de confiança.”
“Essa é a coisa mais bonita que alguma vez me disseste.”
“Vai-te lixar.”
“E essa coisa do cancro é verdade?”
Silêncio outra vez e Paul estava a imaginá-la com o telefone encostado à cara enquanto pensava no que podia dizer.
Mas ainda conseguiu surpreendê-lo: “Vem ter comigo esta noite. The Litton Tree, ao fundo da Hertford Street, junto ao Bull Yard. Então falaremos nisso.”
“Vou ver se consigo lá ir. Por aqui há muito que fazer.”
“Vai lá. Oito horas.”

CAPÍTULO NOVE
Rick observava Kirkland a apontar o putt, a rotina habitual, segurando no taco como um pêndulo, como se fizesse alguma diferença para a sua deplorável pancada. Olha para o agachamento de joelho valgo por cima da bola, como Jack Nicklaus, mas sempre que puxa o taco atrás para iniciar a pancada, sai da linha adequada e empurra o putt. Rick já vira aquilo acontecer muitas vezes, mas gostava demasiado de vencer para dizer a Kirkland qual era o seu problema.
Sexta-feira à tarde era a altura de ir para o campo de golfe, gozando em doses semanais o estatuto de membro, que valia mil e trezentas libras. Levou três anos a arranjar os patrocinadores, mas já conseguira e ia aproveitar o estatuto de membro sempre que podia, não deixando a relva crescer-lhe debaixo dos pés. Sexta-feira era o melhor dia, mas, se pudesse, tentava jogar nos torneios de fim de semana, baixando o seu handicap.
O campo chamava-se Shooters Hill (Monte dos Atiradores – N. do T.), em Greenwich, a um par de quilómetros de Canary Wharf, por mais que custasse a acreditar. Vistas dos montes suaves do norte de Kent, a luzir como agora sob um sol delicado de fim de tarde. Dado o seu emprego, achava divertido ser membro daquele clube em particular, mas dava-lhe jeito, e se também conseguisse um over sobre Kirkland, melhor ainda.
O putt de Kirkland deslizou para lá do buraco. Aí vais tu – não aprende. Rick aspirou o próprio ar por entre os dentes.
“Por pouco, companheiro, por pouco. Um putt traiçoeiro.”
Kirkland meteu no buraco quando estava na linha de Rick, tirou a sua bola do buraco, dobrando um joelho e esticando a outra perna para se equilibrar, como uma cegonha. Era novo na Divisão e Rick trazia-o debaixo da asa mas não ia dar-lhe mimos. Quem estivesse na Divisão já tinha o que era preciso e podia defender-se.
O tee seguinte era um short par 3, sendo Rick a jogar… quando o seu telefone tocou.
Kirkland, levantando as mãos, dizia: “Só podes estar a brincar comigo”; Rick, olhando para o ecrã e levantando o indicador: “Tenho de atender isto.”
Disse para o telefone: “OK, cara de cu, porque é que não me disseste que ias? E, afinal, onde diabo estás tu?”
A voz de Storey estava calma, como habitualmente, aquela maneira que ele tinha de se distanciar duma pessoa, estando sentado na cadeira ao lado. Era o dom do afastamento. Tornava-o bom no seu trabalho.
Quando tinha.
“Não quis falar contigo, já sabia o que ias dizer” – afirmou Storey.
“Tens razão, embora duvide que tivesse muito que dizer – era mais provável deixar-te sem sentidos. Desde logo, não demorou muito a perceber que não tens muito juízo.”
“Foi a minha decisão, Rick. Não podia continuar e, depois, não podia ficar na cidade. Além disso, o meu pai morreu. Tinha coisas a tratar.”
Aquilo fez Rick conter-se mas não por muito tempo. Entendia a família mas achava que Storey podia ter ultrapassado a situação, podia ter parado por uns tempos, como os psiquiatras recomendaram, regressando depois e voltando a montar na sela, como eles diziam.
“Storey” – disse ele –, “és um idiota. O que te aconteceu podia ter acontecido a qualquer pessoa. Estavas a cumprir ordens e, além disso, foste ilibado.”
“Não devia estar em posição de precisar de ser ilibado. O erro foi meu.”
Rick estava com ele nessa noite e ainda conseguia ver o corpo no chão, outros elementos da equipa à volta, a olhar para ele, todos a pensar: Pobre filho da mãe, Storey, isto vai dar merda.
Independentemente de quanto se treinar, as coisas podem sempre correr mal.
Não importa. Pensou no que Thomas lhe dissera – Traz o Storey de volta, precisamos dele – era uma dos melhores, olho vivo, bons pulmões. Ir aonde Storey morava antigamente não levara a parte nenhuma, com exceção dum remoque da vizinha, aquela jovem de provocar suores que, pensava ele, sabia mais do que dizia. Provavelmente gostava de Storey. Era frequente as mulheres gostarem dele.
“Percebo por que razão te afastaste, precisavas de tempo, e essa merda toda. Mas estás a deitar fora coisas a mais. Devias recompor-te e voltar para aqui.”
“Eu demiti-me – já não te lembras?”
“Podes ser desdemitido.”
“O Thomas tem falado contigo? O encanto habitual em pessoa? Estou a vê-lo a querer que fales comigo para voltar porque não suporta fazê-lo ele pessoalmente.”
“Não interessa, pois não? Não tem a ver com ele.”
“Eu sei, estás a pensar em mim. Vocês aí são tão calorosos e fofos… Vai dormir abraçado a um ursinho de peluche.”
Kirkland estava a treinar o seu swing, a olhar para a sua extensão, segurando a sua última posição e inspecionando a inclinação do cotovelo, como se pertencesse a outra pessoa. Rick virou as costas e disse a Storey: “Então, se não voltas e não me dizes onde estás, porquê esta chamada? Se não te importas, tenho aqui um jovem à espera duma boa pancada. E não, não quero corrigir a frase.”
“Tu e a porra do teu golfe. Por acaso, podias ser-me útil.”
Aí está, pensou Rick. Nunca desligam, quando precisam de alguma coisa. Não conseguem tirar o sistema da cabeça – acesso a informação que não conseguem obter em mais parte nenhuma. Sabia que havia muitos homens que deixavam a polícia para ir para a segurança privada e depois faziam uma chamada, como quem não quer a coisa, só para saber como estamos, e podes arranjar-me um endereço… Normalmente dizia: “Não, não posso. Se querias esse tipo de acesso devias ter ficado na polícia.”
Mas provavelmente era melhor manter Storey do seu lado em vez de o chatear já. Se Thomas o queria de volta, tinha de continuar a falar com Storey até ceder alguma coisa e poder fazer a sua jogada.
“Queres usar-me e deitar-me fora como se fosse uma toalha suja” – disse.
“É isso mesmo.”
Então Rick ouviu Storey falar-lhe no pequeno grupo em que tropeçara, uma mulher chamada Araminta e um homem chamado Cliff. Por alguma razão envolvera-se com eles e agora estava a alinhar para descobrir o que andam a fazer. Não sabiam nada acerca dele, mas parecia que gostavam da maneira como se portava.
“Então que é que queres? Prisões? Cauções?” – perguntou Rick.
“Tudo. Conheço o Elliott porque já o conhecia da escola. Bem, via-o por aí. Quanto a esta Araminta, acho que é uma completa fraude. Era bom se de repente aparecesse relacionada com ele, mas duvido que apareça.”
“Devias entregar isso aos polícias locais. Para que diabo estás a envolver-te?”
“Dá-me algo para fazer. Além disso, sou um combatente contra o crime, não sou? Nascido para combater o crime.”
“Desaparece. Agora vou dar uma pancada para o buraco catorze, portanto, desampara-me a loja.”
“Vê lá se cais e te magoas.”
Rick cortou a ligação, virou-se e viu Kirkland a olhar para ele, levantando o sobrolho como que à espera de que lhe dissesse de quem era a chamada.
Esquece. Não precisava de saber de nada. Se ia violar a lei, dando informações a Storey, quanto menos pessoas soubessem, melhor.

CAPÍTULO DEZ
Viu-os antes mesmo de chegar à porta do bar – os três homens de Cliff estavam cá fora, dois deles a fumar, o terceiro, o que pensava que provavelmente era holandês, com uma imperial na mão. Merda. Estaria ela presa a ele? Não podia fazer nada sem que Cliff lá estivesse?
Olhou em redor. O Litten Tree era um bar-restaurante numa zona movimentada perto do centro, na rua que ia para a estação ferroviária e, finalmente, para Kenilworth. Conseguia ver através da porta dupla o grande televisor de parede, que devia ter dois metros ou mais de largura. O local parecia movimentado, embora a rua estivesse calma.
“Que diabo de coincidência voltar a encontrar os três” – disse ele.
Gary, o baixote com olhar intenso, apagou a beata com o pé. “Desbocado, como de costume. És sempre assim?”
“Tu fazes sobressair o melhor que há em mim. A Araminta está por aí?”
Gary olhou para Tarzan. “Que é que achas, Tarz? Viste-a?” Gostava de usar o grandalhão como seu ajudante nas piadas, pensou Paul, uma maneira de provocar os outros. Antes que Tarzan pudesse responder, continuou: “Tenho a certeza de que lhe teria sentido o cheiro. Borracho à procura de alguém debaixo de quem se rebolar como uma porra duma cadela com o cio. Tarz, viste alguém que corresponda a esta descrição?”
Tarzan puxou uma passa do seu cigarro e abanou a cabeça.
“Ultimamente, não. Nada de borrachos cheirosos por estas bandas.”
“Então, que se passa? Estão à espera de alguém? Sabem, alguém me disse há muito tempo que se visse três homens à porta dum bar, dois deles provavelmente eram gays e o outro, invejoso. Portanto, qual é o quê?”
Gary puxou as calças para cima pelo cinto, olhando em redor, a ver se estava alguém a observar, e Paul preparou-se para a eventualidade de vir aí um murro. Tarzan a deitar fora o cigarro, Paul a pensar que estavam a preparar-se, à procura duma oportunidade, quando o Holandês começou a rir-se.
“Levei-vos, os dois, aos arames” – disse ele. “O perito da provocação pregou-lhes uma partida.”
“Cala-te” – disse Gary, com Paul a vê-lo ficar vermelho. “Ao contrário do meu colega Tarzan, estou seguro da porra da minha masculinidade.”
“Sim, eu vi” – disse o Holandês. “Estava-se a ver na porra da tua cara.”
A porta do bar abriu-se e ali estava agora Cliff, atarracado e musculoso, sólido no seu espaço, começando Paul a ver melhor o poder que exercia sobre as pessoas. “Que merda de mariquice é esta?” – disse Cliff.
“Estávamos só...”
“Sim, sim, eu disse-lhes que me avisassem quando este idiota aparecesse.”
“O idiota sou eu?” – perguntou Paul.
“Achas que sim? Serve-te a carapuça e tudo. Anda, anda por aqui” –, pegando no braço de Paul e afastando-o da luz da porta, passando intencionalmente pela zona pedonal de Bull Yard em direção à passagem subterrânea que levava a um silo automóvel com vários andares.
Paul, libertando o braço, começou a perguntar a si mesmo aonde iam. Era ali que Cliff entrava, tentando convencê-lo a alinhar no golpe que estava a planear? Ou havia algo mais?
Pararam no meio da passagem subterrânea, à frente duma parede de azulejos pretos e brancos. Retesou os músculos e, depois, descontraiu-se. Concentrou-se. Sintonizou o ouvido, hipersensível agora ao barulho pés no asfalto, cinco homens a posicionarem-se, a leve brisa a vir da passagem subterrânea, o fedor a vir de meia dúzia de caixotes de lixo industriais azuis.
“Tenho de falar contigo acerca da Minty, como sabes, não sabes?” – disse Cliff.
“Ela está cá?”
“Não te preocupes. Que andas tu a fazer com aquela rapariga? Estás a ver se lhe dás uma? A uma rapariga com bom aspeto como ela? Pode ser uma vaca miserável a maior parte do tempo, mas sabe muito bem tratar dela, concedo.”
Paul inclinou-se para trás, abrindo distância entre ele e Cliff, e disse descontraidamente: “Qual é a vossa? Ela tem um namorado, não tem?”
“Conheceste-o, não conheceste? Ontem. Sei a história toda. Está muito aborrecida por teres falado com ele. Acha que estás a arruinar a sua vida amorosa. Devias perceber, companheiro, que uma pessoa não se mete entre uma rapariga e uma pila amigável. Percebes o que estou a dizer?”
Paul sentiu que, de repente, estava no meio dum círculo, tendo os outros mudado de posição.
“Que é isto?” – disse. Depois, entendeu acrescentar: “Estão a ameaçar-me?”
Cliff olhou para cada um dos seus homens antes de voltar a ele.
“Parece uma ameaça? Cinco sujeitos a conversarem numa túnel merdoso. Podíamos estar a falar de pesca, não podíamos? É uma coisa que nunca compreendi – porque é que chamam a isto ‘pesca recreativa’? Que é a porra dum recreio? Neste contexto, claro.”
“Que é que tens em curso com a Araminta e o David? É a história do cancro? Dar-lhe algum dinheiro enquanto se trata… Estou surpreendido por ele ter caído nessa.”
“O quê? Com a tua grande experiência de psicologia humana enquanto avaliador de seguros, é isso que queres dizer?”
“Entre outras coisas.”
Cliff acenou com a cabeça no escuro, como se soubesse que Paul ia dizer aquilo ou algo semelhante. “Está bem, eu sabia que não eras um miserável dum manga de alpaca. És demasiado agressivo. Que mais há? No teu passado?!”
Paul não disse nada, limitou-se a olhar para ele, deixando os olhos repousarem em cima do outro homem como um peso pesado.
“Aposto que estiveste no exército” – disse Cliff. “Toda essa merda das viagens… Aposto que fizeste uma missão na Irlanda, no Iraque ou noutro sítio qualquer, não fizeste?”
Paul continuava a olhá-lo em silêncio… deixa andar, não digas nada.
Então, Cliff pareceu fartar-se e disse: “Que se foda – não incomodes o David. É um bom homem e está a fazer um trabalho importante. Ao contrário de ti.”
“Se tu o dizes...”
“Ah! Agora já falas, não falas? Pensei que o gato te tinha comido a língua. Portanto, vais manter-te afastado dele, está bem?”
“Vou pensar nisso...”
Mais tarde, perguntou a si mesmo se Cliff fizera algum sinal em que não tivesse reparado ou se a altura já estava combinada… mas um golpe violento atingiu-o na nuca, fazendo-o cambalear, atirando-o para a frente, provavelmente uma pirueta dum dos compridos braços do Tarzan, e depois lá estava o Holandês com a sua cara, uma expressão estranha a aflorar-lhe ao rosto, Paul a dobrar-se quando um murro o atingiu no estômago e o fez expelir o ar dos pulmões. Estava à espera dalguma coisa vinda de Gary na fração de segundo seguinte, mas nada aconteceu.
Cliff estava, então, à sua frente; sentiu umas mãos a agarrarem-lhe os braços e a endireitá-lo, a chiadeira da sua respiração, a visão toldada e uma dor de cabeça a formar-se na parte de trás do crânio. Pensou que estava a ser inspecionado.
Voltou a inclinar-se para a frente e queria cuspir, mas não o fez. Agora, Cliff deixava-o em paz e dava-lhe palmadas nas costas, como se tivesse passado num teste. Paul disse para consigo que devia calar-se e apenas respirar fundo. A visão começava a clarear, embora pudesse facilmente vomitar.
Cliff voltou a aproximar-se e baixou a voz para lhe falar ao ouvido. “Entra quando estiveres em condições. Não há pressa. Não é nenhuma sangria desatada” – disse, baixinho.
Depois, Paul ouviu os homens afastarem-se, a conversar entre eles. Apoiou as mãos nos joelhos e sentiu bílis na garganta.
Estava satisfeito por terem tirado aquilo do caminho.

Quando chegou à porta sentia-se melhor e perguntava a si mesmo por que razão havia de voltar para dentro do bar. Queria uma bebida, mas não sabia até quando conseguiria aguentar Cliff e as suas rotinas pseudomafiosas. Mas também sabia que se se fosse já embora daria parte de fraco e, fosse qual fosse a relação que tinha com Cliff, não podia fazer isso.
Ali estavam eles, sentados junto da janela da frente, sem um pelo fora do sítio e com o cabelo penteado com brilhantina, todos com um aspeto sóbrio, exceção feita de Gary, que queria mostrar ser agora superior a Paul.
Limpou a cadeira e sentou-se em frente de Cliff, olhando-o nos olhos, e virou-se a seguir para Gary, que ainda estava com um meio sorriso para ele e os olhos brilhantes.
Com um movimento displicente, Paul derrubou a imperial de Gary, entornando-lha no colo, e, antes que Gary conseguisse recuar e pôr-se em pé, Paul agarrou-lhe o cabelo e empurrou-lhe a cara contra a mancha de cerveja, mantendo-o assim enquanto olhava de novo para Cliff, ignorando as tentativas de Gary para se libertar. Tarzan e o Holandês ficaram tensos, mas não fizeram nada.
Cliff não se movera. “O Gary nunca te tocou” – disse.
“A sério? Então, devia ter cuidado com as companhias.”
“Está a ficar molhado. Além disso, depois cheira mal.”
“De qualquer modo, precisava duma muda de roupa. Eu já estava a ficar farto daquele casaco.”
Paul afastou a cabeça de Gary, empurrando-a, e o homenzinho levantou-se, cerveja a pingar-lhe da cara, e deu um passo em frente.
Em voz baixa, Cliff disse: “Não faças isso. Aqui, não. Vai lavar a cara. Aprende a não te rires dos infortúnios dos outros.”
“Vou lixá-lo” – disse Gary, limpando o queixo. “Espera e vais ver se não o lixo. Quando ele menos esperar.”
Afastou-se, encaminhando-se para a casa de banho. O Holandês foi ao balcão, trouxe guardanapos e secou a mesa.
“Lembro-me de ti da escola” – disse Cliff –, “mas, na realidade, não me recordo. É como se soubesse de ti – jogaste râguebi, capitão da equipa de ténis. Não me lembro de te ver muito. Repara, eu não ia muito à escola. Meti-me sempre em sarilhos. A minha vida levou uma volta diferente da tua, não foi? Meti-me na droga e, depois, no pequeno crime para a pagar. A merda do costume. Consegui sair antes de entrar nas drogas duras. Desde então, vivo aqui. Peixe miúdo em lago pequeno. Olha lá, onde é que aprendeste isso?”
“Isso, o quê?”
“O Gary estava a tentar sair de debaixo de ti, mas tu mantiveste-o seguro só com uma mão. Na merda das Forças Especiais ou coisa parecida? Pontos de pressão, etc.?”
Paul disse para consigo que tivera sorte – estava sentado num ângulo em que conseguia pressionar a cabeça de Gary para baixo sem demasiado esforço. Também não estava completamente fora de forma, pelo que conseguia rodar o ombro e o cotovelo para manter o homem, mais baixo, pressionado.
“Apanhei uma ou duas coisas. Autodefesa. Os seguros podem ser um negócio sujo” – disse.
Cliff estava a olhar por cima do ombro.
“Lá vem o Gary. Já podemos ir-nos embora. Levanta-te.”

Paul pensou que estavam finalmente a chegar a algum lado quando saíram e Cliff o guiou até um grande furgão branco estacionado na rua, perto duma praça de táxis.
Cliff abriu a porta do condutor e subiu, enquanto o Holandês abriu uma porta de correr do lado do passageiro e disse a Paul que entrasse. Uma vez lá dentro, Paul procurou um lugar e reparou que o Tarzan entrara atrás dele e ocupara o lugar à sua frente, com as molas a rangerem quando o grandalhão se sentava. Perguntou a si mesmo se o Tarzan estaria a guardá-lo. O Holandês e Gary iam à frente com Cliff, que ligou o motor, meteu a primeira e partiu, afastando-se do centro.

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