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Minotauro
Sergio Ochoa Meraz
Um polícia investigador da velha-guarda, autoexilado na área de arquivos; um advogado erudito e boémio, preso num insignificante posto burocrático; e uma bela psicóloga, especializada em distúrbios do sono e assombrada pelos fantasmas do passado: três vidas entrelaçadas no contexto de uma trama subtil que termina com um final sublime. Um polícia investigador da velha-guarda, autoexilado na área de arquivos; um advogado erudito e boémio, preso num insignificante posto burocrático; e uma bela psicóloga, especializada em distúrbios do sono e assombrada pelos fantasmas do passado: três vidas entrelaçadas no contexto de uma trama subtil que termina com um final sublime. Na melhor tradição do romance negro latino-americano, Sergio Ochoa projeta no Minotauro um relato de ambientes obscuros e personagens enigmáticas que mantêm o leitor preso e, como quem não quer a coisa, página após página, vai mergulhando numa série de reviravoltas filosóficas adornadas de um toque de humor um pouco duvidoso.


MINOTAURO
Crime ou Sacrifício?
De:
Sergio Ochoa Meraz
Traduzido por Susana Franco
Para Dom Sergio, o meu pai
Para Dom Jorge, o meu amigo
Tenham uma boa viagem, senhores.
Assim seja.
Toda a história deveria ter um final feliz
Capítulo 1
Um Polícia
Roberto Velarde era um polícia de estirpe, talentoso; pode-se dizer que era praticamente desde que foi concebido.
Olhar para trás, para a história da sua família, era o equivalente a limpar o pó dos crachás, nomeações e fotos de homens rigorosamente vestidos com um uniforme por aqui e por ali.
Para ele sempre foi evidente, tão evidente que, na sua juventude, desistiu dos prazeres mundanos para se dedicar totalmente à academia do Distrito Federal.
Nas suas entranhas continuava o desejo ardente de ser um detetive, de resolver os piores crimes; de viver em grande. Ser algo como a versão mexicana do Dick Tracy - aquele dos desenhos animados de domingo.
Contudo, a política, a grade interna às corporações e interesses dos outros, foi responsável por extinguir nele, gradualmente, a chama da justiça, até a extinguir quase que por completo; Velarde testemunhou mais do que uma vez a venda e compra da justiça, a corrupção; o preço pelo qual a legalidade era avaliada.
Se havia decidido continuar a ser polícia, era mais por gesto romântico do que por outra coisa, talvez também por vocação. No fundo, ainda havia nele a necessidade predominante de consertar, compor, fazer a diferença; de se distinguir.
Quando Roberto Velarde ainda era muito jovem, aos 19 anos, foi convidado pelo próprio Dr. Alfonso Quiroz Cuarón, - um amigo íntimo do seu pai e civil, - para integrar a sua equipa de trabalho como estagiário. Foi ele quem investigou, reuniu e integrou os arquivos que resultariam na captura dos criminosos que se revelaram os personagens da época, incluindo um que colocaria o Distrito Federal no foco da imprensa da época e em artigos de jornal sérios que deram a volta ao mundo, porque era nada mais, nada menos do que Gregorio Cárdenas Hernández, também conhecido como "el Goyo Cárdenas".
Foram momentos decisivos na sua formação, na sua fome como pesquisador; o mundo da psicologia criminal a que teve acesso diário, graças à tutela de Quiroz Cuarón, que acabou por delinear nele um maravilhoso agente da polícia judiciária federal (habilidades e conhecimentos que também lhe permitiam tirar proveito das suas lebres como infiltrado da Polícia Secreta quando tinha oportunidade).
Porém, isso foi há muito tempo, essa voz interior e esse desejo de transcender, que se desvaneceram quase por completo.
Quase quarenta anos se passaram e Velarde, com o posto de Capitão, trabalha como detetive na área de homicídios da capital da Cidade de Chihuahua. Não há muito trabalho, pelo menos comparado com as décadas anteriores; o grupo criminoso, liderado por um famoso traficante de droga de Guadalajara e um fugitivo da justiça, esteve aparentemente muito ocupado com as diferentes autoridades de outras áreas; Velarde e a sua experiência já não era tida em consideração. Se ao menos soubessem que este tipo tinha mais anos de espionagem do que qualquer militar no ativo, e que na altura, foi o aluno preferido de Marcelino García Barragán; mas as pessoas esquecem-se facilmente e nenhum dos seus colegas de trabalho o vinculava com “aqueles veteranos”, pelo menos era assim que se lembrava e que se referia a eles – a si próprio –, principalmente quando ouvia as barbaridades e disparates em que incorriam os novatos ao fazerem as suas pesquisas e ao integrarem os seus casos.
Velarde compensava o dia com horas extras ao fazer trabalho de escritório; para surpresa de muitos, era uma boa forma de capturar arquivos e executar várias tarefas no IBM PC 5150; a grande habilidade de datilógrafo que teve desde tenra idade, manteve-a até à idade adulta. Agora, em vez de usar aquelas folhas de papel de carbono, fazia ‘backup’ das informações em disquetes de 5”¼ e quando havia necessidade de integrar um arquivo, o ruído da impressora matricial não parava; também arrumava caixas, costurava arquivos e resgatava artigos de papelaria dos ratos ferozes.
Ali, no arquivo morto, era onde havia tempo para bisbilhotar e acompanhar tudo. Vivia praticamente ali e, tanto quanto os novos agentes mantinham zelosamente - e trancados à chave - os seus arquivos, estes acabavam numa caixa empilhada na parede que protegia Velarde de qualquer lugar. Ali, onde as máquinas de escrever Remington estariam "temporariamente" antes de serem descartadas ou doadas para outro escritório e ficarem umas em cima das outras por seis anos; ali, onde o cheiro da velha humidade e a poeira acumulada formavam uma camada densa como creme, era onde as lembranças fugazes de uma dinâmica de um ontem que encurralavam um polícia que via com desconfiança e incredulidade ter que se afastar num dia cada vez mais próximo.
O que faria depois? Perguntava-se com frequência. Tornar-se-ia um detetive particular, daqueles que eram contratados apenas para exibir maridos infiéis? Deixaria de haver uma verdadeira luta contra o crime, a oportunidade de resolver um caso que o colocaria nos jornais, que o tornaria famoso.
Nada era como nos filmes; nada.
Capítulo 2
Jorge Sonha
Na noite de quarta-feira, 5 de agosto de 1982, a lua cheia tomou conta da plenitude do céu da cidade de Chihuahua. As noites ainda não estavam completamente frescas, mas também já não estavam quentes.
O vento começou a soprar e a atravessar as ruas, os álamos gigantes balançaram de forma estranha; ainda faltava um pouco para começar a aparecer a sua ninhada característica de folhas de outono.
A luz da lua vestia-se com a folhagem daquelas árvores quando uma súbita rajada de vento apareceu do nada e entrou pelo quarto do Dr. Jorge Ledezma através de uma rachadura na janela, enquanto ele estremecia, vítima de um pesadelo.
Sonhava com um dia qualquer da sua infância chaveñera: corria pelo passeio da rua Espejo ao voltar da loja, trazia na mão um saco de papel cheio de doces – já havia levado alguns à boca – e perto da entrada de um bairro, chocou contra as pernas de uma mulher que lhe apareceu do nada. Não a derrubou por sorte; era uma mulher alta e esbelta, de aparência sóbria, porém sombria, com cabelos loiros exuberantes, quase platinados, que emolduravam um rosto cujo olhar era profundo, mas vazio.
A mulher inclinou-se para ele e com certa familiaridade agarrou-o pelos ombros com as duas mãos e disse numa voz rouca; áspera: "quando estiveres pronto, sonharás comigo e depois eu digo-te o que fazer"... Jorge acordou sobressaltado quando a porta do quarto se fechou com um estrondo, fazendo um dos seus vitrais de enfeite cair no chão.
Congelou, confuso... suava, ofegante e olhava para a pequena lâmpada que oscilava, acompanhada pelo barulho causado pelo vento; não pôde deixar de pensar na espada de Dâmocles.
Na manhã seguinte, apressou-se para resolver os seus casos em aberto, saindo de casa sem tomar o pequeno-almoço - como costumava fazer quase todos os dias. Percorreu algumas ruas abaixo em direção ao Paseo Bolívar, onde abordou um táxi para ir para o seu escritório, localizado na primeira praça da cidade; ali, esperava-lhe uma colina de arquivos para rever.
O seu trabalho como consultor técnico do Congresso Estadual incluía, entre outras coisas, a revisão das ocorrências de deputados locais e o seu desejo em destacar-se na plataforma com planos, programas, reformas e preocupações sem que gerassem inconsistências logísticas ou contradições constitucionais; ou ambos; o que era lamentavelmente comum. Parecia que em cada legislatura, essas explosões aumentavam.
Havia muitas coisas para se concentrar e documentar contra os códigos, regulamentos e vademécuns, mas uma ideia permaneceu na sua mente. O que o acordou agitado durante a madrugada tinha sido um sonho, uma premonição ou parte de uma memória? Algo anteriormente vivido do qual não se conseguia lembrar de nada? A imagem era nítida, mas a sua origem imprecisa... teria acontecido? Já se teria encontrado com aquela mulher? Ela existia? Existiu?
As lembranças da infância não eram muito claras para ele, Jorge era um jovem adulto, mas não gostava de colecionar aquele género de histórias, preferia evocar a juventude da criançada, as experiências da adolescência e a sua chegada à capital, onde deixou a sua amada Ciudad Juárez para se tornar um chihuahuita, um estrangeiro sempre à espera de voltar para a sua terra natal, mas de alguma forma, casado com a capital.
Para ele, como para muitos forasteiros, a capital do estado de Chihuahua recebeu-o e tratou-o maravilhosamente bem, não apenas pela hospitalidade tão severamente proclamada naquela cidade, mas por seu próprio mérito, pois se mostrou um excelente aluno da Faculdade de Direito, um dos odiados por alguns colegas por ser dos favoritos dos médicos; especialmente dos veteranos, daqueles a quem o professor era mais uma dívida do partido político que os uniu desde o nascimento e reconhecimento da sua militância do que uma atividade vocacional.
Isso era verdade para alguns deles, mas não para todos, e Jorge sabia como identificá-los facilmente, embora nunca abusasse da proximidade ou a usasse para passar por cima de qualquer assunto.
O aluno externo, o chaveñero, gostava de retórica e declamação; gostava da sua participação e logo se tornou amigo de outros alunos destacados do corpo docente, de diferentes semestres; ficou conhecido por ter uma grande capacidade de interpretar e rever livros; era um hermenêutico nato.
A sua mente regressou do percurso de lembranças sem se aperceber das horas, até que ouviu alguns murmúrios nos escritórios vizinhos, uma vez que as pessoas começavam a despedir-se para ir comer. Jorge nem teve tempo de sair e desfrutar de um dos requintados burritos de machaca com ovo que a Dona Rosy vendia na sua famosa loja, ali perto, a poucos passos do prédio onde trabalhava.
Quando Jorge não estava no escritório, andava como um peixe na água pelo Palácio do Governo; sempre lhe pareceu imprudente que o escritório do governador e o H. Congresso do Estado estivessem no mesmo lugar, mas era um costume do qual ninguém discordava.
Tentou mergulhar novamente na leitura, mas era impossível concentrar-se em algo que não fosse a noite anterior. Quantas vezes já tinha tido aquele sonho? Duas? Três? Quem era a mulher loira? Alguma professora da primária? Uma vizinha?
O trabalho começava a ficar um pouco complicado e a mente precisava de uma válvula de escape, sem dúvida. Além disso, já era quinta-feira, portanto, uma breve visita à cantina centenária La Antigua Paz para alguns "jaiboles" era mais que justificada; uma grande vantagem era o facto de estar localizada a menos de dois quarteirões da sua casa; bem pertinho como ele dizia.
Capítulo 3
O pai de Mariana
Mariana perdeu o pai aos dezassete anos, embora referir-se a esse evento como uma perda, a princípio tenha-lhe custado muito trabalho.
O tempo encarregou-se de colocar algumas coisas no seu lugar e, consequentemente da lógica, de perturbar outras.
Sim, para os outros foi uma perda, uma grande perda e isso foi manifestado por ela como um acordo social. Mariana sabia muito bem como lidar com essas convenções sociais; agora, uma vez que era psicóloga, dedicava-se à elaboração de perfis por meio delas.
O seu pai havia escolhido para ela um futuro de provisão, de dependência, ainda que o Engenheiro Salgado fosse um homem culto, nunca abandonou a ideia habitual de que a mulher ficava melhor na sua casa: ele pensava com esmero que era da conta do homem sair e se encarregar da probidade, além de não ter que prestar contas a ninguém do quê ou como - exceto à mulher.
Pouco antes da morte do patriarca da família Salgado, as brigas da família eram o pão e o sal de cada dia, incluindo os fins de semana em que os passeios aos restaurantes e outros eventos da vida social eram adiados até novo aviso, para evitar problemas públicos.
Mariana desafiou o pai e tudo o que ele representava desde que o censurou por ter uma vida dupla e por ser um mulherengo. Não era difícil para ela censurá-lo com a assistência de que o Engenheiro tinha pelo menos dois filhos fora do casamento.
Aquela rapariguinha que ia com ele a todo o lado para comer gelado e procurar livros antigos, era agora uma jovem caprichosa, mimada e contestada que procurava respostas que deixava os seus pais desconfortáveis; que se sentia desprezada por não ser um menino:
- Já te disse o que tens de fazer Marianinha, porque repetiria?
+ Sim mãe! Eu disse-te que não queria ir! Não gosto dessas reuniões e fico entediada de ouvir sempre a mesma coisa!
- Filha, é importante para o teu pai, para a família! É isso que devemos ser, uma família e apoiar o teu pai! Não quero que fiques com essa cara, não faças o teu pai desatinar que ele já tem bastantes pressões no seu...
+ …Trabalho, sim, eu sei! É sempre a mesma cantiga! Irrita-me mãe! Porque é que ele não me pergunta? Porque é que te usa como mensageira?
- Mais respeito Mariana, não sou mensageira de ninguém! E se ele não te pergunta, é porque sabe que o vais rejeitar, que vais dizer-lhe que não e que mais tarde vais atirar-lhe à cara os teus disparates!...
+ Que disparates, mãe? Eu só quero saber o porquê de tanto mistério? O que está ele a esconder?
- Ele não esconde nada, ele é meu marido e já o é antes de nasceres, acho que o conheço melhor do que tu e ele não esconde nada! – Ao dizer isto, ela sabia que mentia... mentia a si própria.
+ Sim... antes de eu nascer era melhor, não era?
- Lá estás tu outra vez com o mesmo, que aborrecimento, Mariana!
Não, não havia saída ou conclusão definitiva naquelas explosões de interrogatório com a qualidade da Gestapo. A atmosfera acelerada, causada pelo encontro com a pirralha que antes era agradável e que agora era uma adolescente intratável contornara o Eng. Salgado para ficar mais absorvido e praticamente morar na biblioteca da casa, um lugar onde deliberadamente não havia televisão nem um rádio que chamasse a atenção da jovem, que preferia ficar de barriga para o ar no quarto a folhear revistas e a falar ao telefone com as amigas da escola.
Aquelas tardes sonhadoras onde o Engenheiro e a sua linda filhinha Mariana corriam pelo jardim com um cata-vento, sentavam-se na fonte a comer gelado ou jogavam-se de costas para ver o céu e procurar a forma das nuvens que haviam deixado para trás, para dar uma espécie de rancor no coração da Sra. Julia, viúva de Salgado, pela perda do seu marido, o Engenheiro, e apontar Marianinha e os seus caprichos estúpidos como o único responsável: estudar Psicologia... ha! Como se fosse preciso ela estudar mais do que o secundário. Podia casar-se com qualquer homem bonito que aparecesse e a enchesse de netos - pensou a viúva, - mas esse desejo de se defender e fazer as coisas à sua maneira era mais característico de um homem, um varão, o qual nunca chegou.
O Eng. Mario Salgado morreu de um ataque cardíaco repentino enquanto estava na sua biblioteca, no seu refúgio; o seu santuário.
Revia, por assim dizer, um livro que Jacobo Aguilar recebera por acidente na sua livraria. Não fazia parte de nenhum pedido, vinha numa caixa com outros livros que tinham sido solicitados a uma editora do Distrito Federal, mas aquele volume em particular tinha sido embalado com muito cuidado, embrulhado em folhas de jornal e tecido, amarradas de forma desajeitada.
Era um volume em espanhol do final de 1800, pesava pouco mais de dois quilos e estava em perfeitas condições. Jacobo já o havia lido na íntegra e preparou uma crítica maravilhosa que foi compartilhada na mais recente reunião fechada, realizada na Loja da qual ambos faziam parte.
No entanto, havia algo que não dava para entender, algo que definitivamente "não se encaixava". Como é que aquele livro tinha aparecido dentro da caixa? Isso causou-lhe uma estranha sensação de desconforto, desgosto.
Sendo um homem de ciência, ou pelo menos era assim que gostava de se ver, Jacobo ficou aliviado quando o Eng. Salgado lhe pediu que lhe emprestasse o livro para levar para casa. Ele não hesitou em concordar, de facto, estava prestes a pedir-lhe que o levasse; mas também não queria perdê-lo. Era uma espécie de capricho: queria-o por conta própria, mas não queria estar perto dele, então o pedido veio a calhar. O Eng. Salgado não estava obcecado em ler aquele livro, que incluía algumas das obras de Wagner, ele já as havia lido em outros volumes. O que realmente chamou a sua atenção foi o cuidado prestado na tradução.
Capítulo 4
Feliz Aniversário
Jorge entrou no bar de um famoso restaurante que ficava exatamente num dos quatro cantos que formavam a Avenida Colón e a Avenida Juárez. Aquele lugar era, por assim dizer, um dos seus centros de operações, "daqueles com toalhas de mesa compridas".
A sede habitual do fim de semana invadira-o, ele procurou uma mesa e ocupou-a, depois, cumprimentou o empregado, atualizou o seu crédito e preparou-se para iniciar o seu habitual ritual de brutalização, o de quase todas as sextas-feiras.
A poucos metros da sua mesa, um grupo de amigas reunira-se para comemorar um aniversário; o de Mariana Salgado: uma mulher alta, de pele clara e cabelos escuros, que hoje faz 29 anos. Mariana tinha uma voz grossa e uma presença que imediatamente captou a atenção de Jorge, que não teve oportunidade de esconder a sua surpresa ou interesse incipiente. No entanto, aparentemente, não estava na hora de cortejar, as amigas haviam colocado imediatamente uma cerca territorial em torno de Mariana e Jorge respeitou esse limite. Ele cumprimentou as damas com um gesto galante e mórbido, e deu instruções ao empregado de mesa para servir uma rodada de bebidas no seu nome, mas sem vontade de perturbar.
- Miguel!
+ Em que posso ajudá-lo, Dr.?
- Quando tiveres oportunidade convida aquelas senhoras para uma rodada do que quer que estejam a beber, mas, assim tal como és, muito educado!
+ Claro, Dr.!
- Espera algumas rodadas e depois...
+ … Impressiono-as! Como queira, Dr.!
- Exato, mero Mike, sem piedade!
Hahahahaha! – Os dois riem.
As senhoras talvez estivessem a ser muito barulhentas. Deram dois presentes separados a Mariana e ela agradeceu em detalhes, olhando diretamente nos olhos uma da outra; em ordem e com calma; não fez movimentos bruscos e surpreendeu-se com grande naturalidade, mas sem nunca perder a postura, era uma mestra na arte sombria da comunicação não verbal e também muito boa em cultivar amizades.
- Que meninas bárbaras: Andrea, Luisa, não deviam ter-se incomodado! Esta bolsa deve ter-vos custado uma fortuna!
- Nem por isso, Marianinha! Além disso, sabemos que gostas muito delas!
+ Sim, - Luisa acrescentou - o mais difícil foi chegarmos a um acordo! Tão difícil, hein! É melhor a usares tooodos os dias, porque quase perdes duas amigas!
Hahahahaha! Desataram todas a rir às gargalhadas.
Andrea, uma das amigas de Mariana, não parava de se virar discretamente para olhar para a mesa do lado. Entre vislumbres e suspeitas, reconheceu um jovem, que no início mostrava um evidente interesse na sua mesa, talvez pela argumentação, ou quem sabe tenha reparado em alguma delas, mas das últimas duas vezes em que se virou para olhar para ele, reparou que ele tinha um olhar vago e um tanto perdido, dando a impressão de que estava distraído a pensar noutra coisa.
Já tinha passado o tempo equivalente a duas bebidas, uma cerveja no caso de Jorge, que observava que todas ou quase todas as amigas de Mariana eram casadas, menos ela. Esperou pacientemente que o empregado chegasse à mesa delas e desse a cada uma as suas bebidas. As mulheres ficaram surpresas e questionam o garçon, que indicou: "são cortesia do cavalheiro daquela mesa, que vos deseja uma noite agradável e um feliz aniversário!" Mariana corou, Miguel, o garçon, dominava perfeitamente a sua arte e a fazia muito bem como emissário.
O gelo estava quebrado, as damas brindavam à distância com as bebidas nas mãos e Jorge levantou o copo, desejou um feliz aniversário e estabeleceu contacto visual com Mariana, que no fim do seu convívio certamente iria ter com ele à sua mesa.
A celebração terminou, seguida de uma reunião familiar na casa de Mariana. Na voz de um "vamos juntas", seguiu-se uma solitária de "já vos apanho, não vou demorar". As damas sorriram maliciosamente, mas concordaram com o pedido sem hesitar, enquanto lançavam olhares desaprovadores e desconfiados a Jorge, que segurava um copo que estava sobre a mesa. Estava realmente absorvido nos seus pensamentos; naquele momento, Jorge não estava ali.
Mariana aproximou-se da mesa de Jorge, usando um vestido de cor sólida, muito conservador e um discreto conjunto de pérolas à volta do pescoço que combinavam com o seu conjunto de brincos. Ninguém personificava melhor a aparência de Diana Spencer do que ela, mas com cabelos escuros.
Ela cumprimentou com a sua voz rouca, chamando a atenção de Jorge:
- Posso sentar-me? Ela perguntou enquanto tirava a sua bolsa Halston tipo clutch de debaixo do braço direito, para pousá-la elegantemente sobre a mesa, os brilhos dos detalhes de metal entre a pele ilustravam de forma coquete a cena.
- Claro! - Jorge respondeu, encarando-a como se tentasse reconhecer uma estranha.
Um pouco envergonhada, Mariana perguntou: lembra-se de mim? Sou a aniversariante, estava sentada ali ainda agora. E apontou com um sorriso para a mesa na direção em que esta estava localizada.
+ Ah! Claro, desculpe-me, ele levantou-se para recebê-la: Jorge Ledezma às suas ordens, estendeu a mão para cumprimentá-la, apanhou-me um pouco distraído, dando voltas a um assunto...
- Mariana Salgado - muito prazer - ela correspondeu ao gesto do protocolo, se estiver ocupado, deixamos para outra ocasião, voltou-se.
- Não... não, peço desculpa. Não tem grande importância e julgo que já lhe dediquei tempo suficiente e, na verdade, não cheguei a nenhuma conclusão.
Ambos ocuparam as suas respetivas cadeiras, as poltronas características daquele bar.
+ Está a usar um anel muito bonito. É um presente do seu pai? Jorge atirou um dardo venenoso sem pretender.
A sua intenção nunca foi a de incomodar ou desequilibrar a dama. Nem sequer pensou nisso, mas se tivesse pensado, seria muito semelhante ao som do golpe que um taco de madeira faz quando um “hit” maciço é conectado diretamente ao defesa central.
Mariana corou de repente e foi remetida à sua adolescência: ao dia em que recebeu o anel de presente. Agora era ela quem estava ausente...
- Sim, o meu pai deu-mo quando acabei o secundário, era dele e ajustou-o para que ficasse comigo.
Mariana retirou o anel e colocou-o nas mãos de Jorge, que o observou com cuidado e em detalhes autênticos. Era uma peça de ouro de 14 quilates, com gravuras nos ombros, num deles, o escudo da loja maçónica do rito escocês de El Paso Texas, no outro um "X" formado por dois pergaminhos enrolados numa folha de oliveira, distintivo do grupo ao qual o ex-proprietário pertencia como tutor da biblioteca e secretário de acordos; na armação, a bússola clássica e o esquadrão, emblema da Maçonaria e, abaixo dela, dois rubis e as iniciais G11.
Mariana nunca tirou a peça do dedo para a mostrar a alguém. De repente apercebeu-se, mas não se sentiu desconfortável, pelo contrário, a sua reação foi tão natural e confortável que até sentiu alguma familiaridade.
- É maçónico? - Perguntou Mariana. - Como soube?
+ Jorge mentiu: não, mas sempre trabalhei com muitos deles! - Mariana sabia que a primeira parte da resposta era uma mentira:
- Ai sim? E o que faz?
+ Sou funcionário do governo, "legionário" de profissão.
- Como?
+ Advogado, mas não um litigante!
- Ah não, então é de quais?
+ Daqueles que apenas prestam aconselhamento… E o que se segue como parte da celebração?
Mariana voltou a ficar desconfortável, não estava acostumada a tantas perguntas e, em apenas um instante, Jorge já sabia mais sobre ela do que muitas pessoas que a conheciam há anos.
- Bem, vamos encontrar-nos na minha casa, será algo familiar... ela sentiu que a sua resposta necessitava de cortesia e recuou, depois pensou em voz alta. "A verdade é que não sei se seria uma boa ideia convidá-lo, não quero ser arrogante, mas as minhas amigas e a minha família... ah, que azar!" - Ela sentiu-se entre a espada e a parede.
+ Não se preocupe, não se sinta desconfortável, eu entendo. Haverá outra oportunidade, costumo vir cá com frequência. O grande Mike pode testemunhar isso, certo Mike? Agora era o empregado que corava. Apesar de estar a uma distância prudente, nunca pensou que Jorge o incluiria na conversa. Muito contente, acenou à menção da sua pessoa com um gesto silencioso de aprovação. Jorge ergueu levemente o copo para o cumprimentar e depois tomar um gole final da sua segunda cerveja.
- Olhe Jorge, já aqui estamos e, se deixarmos à sorte, será difícil coincidir. Deixe-me dar-lhe os meus dados, dê-me só o tempo de chegar a casa primeiro; a minha mãe já deve estar louca; espero por si, não me deixe ficar mal!
+ “Nunca faria isso!” Ele pegou no cartão de visita e colocou-o no bolso interno do casaco.
Jorge não costumava aceitar aquele tipo de convites, presumia que já representavam um compromisso e era o que menos queria. Bebeu mais umas duas cervejas e estava decidido a ficar lá, mas havia algo de extraordinário naquela ocasião e, de repente, quis investigar aquele impulso. Não eram apenas as pernas longas de Mariana, era algo que ela precisava enfrentar - um escrutínio académico estrito -, dizia para si próprio a sorrir, como se estivesse a justificar a decisão de atender ao convite de Mariana.
Capítulo 5
Mestre Jacobo
O amigo mais próximo do engenheiro Salgado era o mestre Jacobo Aguilar, que além de serem colegas de quarto e terem a mesma licenciatura, também compartilhavam um gosto obsoleto pela leitura. Eram uns estudiosos, que costumavam passar longas horas a rever livros e a compartilhar dados, fosse como parte dos deveres de custódia dos livros da fraternidade ou como uma jornada pessoal; pareciam duas crianças toda a vez que uma remessa chegava de uma editora ou um pedido especial. O professor Jacobo Aguilar era o proprietário da Livraria A Bússola, localizada na esquina da Rua Libertad e da 15ª rua, no centro da cidade.
Quando Jacobo recebia uma daquelas caixas com livros pelo correio, notificava imediatamente o engenheiro Salgado, que cancelava todos os seus compromissos naquele dia, ia para casa, comia às pressas e fazia-se acompanhar da sua filha para ir à livraria do Tio Jacobo. No caminho, paravam para comprar gelado, amendoim ou algum doce para adornar o evento.
A pequena Mariana também carregava os seus livros de colorir e a sua caneta sortida. Bem, pelo menos eram assim estas visitas enquanto Mariana ainda era criança. Uma vez que cresceu, perdeu o interesse em acompanhar o pai onde quer que fosse e, na adolescência, nem sequer podia tolerar estar perto dele.
O último volume do diário de Jacobo Aguilar era o volume XVI, que começava no final de julho de 1971 e ia até fevereiro de 1972, onde era relatado, por vezes em detalhes, outras vezes de forma superficial no dia a dia do pessoal. Reuniões, assuntos abordados, compras e vendas dos seus livros, consultas, consultas pendentes e até visitas ao médico eram citadas nesse texto.
Aquele volume estava sob a proteção zelosa da viúva de Aguilar, a Dona Julia, que percorria com detalhes dolorosos os últimos meses da vida do seu parceiro, do seu amigo, tentando perceber o que tinha acontecido.
O caderno já tinha as marcas da leitura obsessiva; frenética. A Tia Julia fazia-se acompanhar pelas tardes e noites sem dormir daquele diário, arrancando incansavelmente as folhas à procura de respostas, ansiando por reconforto, fortalecendo a sua postura, convencida do seu pensamento. Jacobo não tinha morrido num acidente, havia algo mais, não era nada fortuito!
Jacobo já não estava mais ali, pelo menos fisicamente, mas tinha deixado uma série de pistas - pelo menos era o que a viúva pensava - uma rota marcada com migalhas de pão que precisavam de ser seguidas e que levavam a algum lugar; que poderiam revelar muita coisa. A borda do fio de lã que Teseu amarrou à porta do labirinto para encontrar novamente a saída.
Só precisava encontrar a primeira pista; o primeiro sinal.
Julia tinha a certeza de que o jornal era uma distração, que nem sequer era uma referência, que a mensagem deveria estar escondida na antiga livraria, propriedade de Jacobo.
A Tia Julia não tomava como literal grande parte do diário, sabia que Jacobo tinha as suas metáforas; ele divertia-se com isso. Poderia referir-se a uma visita ao antigo mercado da quarta rua como uma viagem à terra santa; os trabalhos de contabilidade dos seus amigos estavam citados como o zoológico e os macacos; Jacobo Aguilar era um enigma; um divertido quebra-cabeças.
Capítulo 6
Fantasmas
O trabalho de Velarde era antes de tudo rotineiro, monótono. Há muitos anos que deixara de ser entediante; poderia ter sido, quando se preocupava em perder tempo com outras coisas, mas não agora.
Há algum tempo que decidiu deixar as ruas para se refugiar na área dos arquivos. Os seus joelhos já não funcionavam como deviam; o subsolo do prédio que abrigava os escritórios da Polícia Judiciária Federal haviam-se tornado o seu refúgio, o seu santuário. As centenas de caixas empilhadas e bolorentas eram a sua melhor companhia.
Embora Velarde já não fizesse patrulha, mantinha a sua arma de ataque, tinha-a sempre consigo, carregada. Estava longe de ser nova, mas sempre a mantivera em boas condições. Tê-la recebido das mãos do próprio Gustavo Díaz Ordaz, concedeu-lhe, no mínimo, uma permissão vitalícia de posse de arma.
Velarde preocupava-se em permanecer confinado, embora pudesse admitir que a princípio era confortável ter uma participação inativa na força policial, mas ultimamente desesperava-se por se sentir enferrujado. As ocasiões em que era considerado participante de uma operação eram raras, sem falar de uma invasão. Ele não tinha a confiança expressa dos seus chefes; mantinha a sua posição devido aos seus contactos no Distrito Federal (que eram cada vez menos) e por ser o único elemento que cobria férias, ausências e horas extras sem dizer uma palavra.
Estava há tanto tempo naquele exílio na área de arquivos, que isso o deixou inadvertidamente maluco. Os ruídos que conseguiam filtrar do exterior foram gradualmente transformados numa voz interior desconfortável que o incomodava, que zombava da sua velhice prematura, da sua falta de mérito, da sua solidão; atormentando-o.
Os murmúrios, o barulho do escritório, os olhares que não eram acompanhados por nenhum som; tudo era suspeito para ele.
O que antes era o refúgio perfeito agora causava-lhe ansiedade, confundia as suas ideias, alterava-o ao ponto de ter fortes confrontos verbais com os seus colegas. Todos injustificados. Andava irritado; irascível.
A gota d'água: um talão no para-choques do seu carro.
Roberto entrou na esquadra a gritar, cheio de raiva, porque precisava encontrar o autor daquela canalhice e fazê-lo pagar por aquilo.
A explosão de Velarde aumentou de tom até que ele passou de gritar a pontapear o bebedouro, o jarro de vidro caiu e estilhaçou-se no chão.
A confusão chegou aos ouvidos do comandante que saiu do seu escritório para ver o que acontecia e, quando confrontou a cena, impôs ordem aos gritos, pediu que o local fosse limpo e ordenou que Velarde o acompanhasse.
- Velarde…Velarde… Capitão Velarde!
+ Sim, Senhor! (Velarde saiu do seu transe e bloqueou).
- Venha comigo! (gritou).
Cheio de vergonha e tentando recapitular o que aconteceu, Velarde olhou para o rosto dos seus colegas que não acreditavam no que tinha acontecido: o polícia mais experiente e reservado tinha explodido como um caldeirão, expressando-se de uma maneira que ninguém conhecia, cheio de raiva. Agora, era invadido por um sentimento quase infantil de vergonha, podia-se até dizer que sentia vontade de chorar, como uma criança depois da mais terrível birra.
No seu interior, ouviu uma voz que celebrava o sucedido - Sim, foi bom! Que fiquem a saber que não estás para brincadeiras!... Estiveste bem! És o Capitão Roberto Velarde! Até o comandante bateu continência, viste?... Idiotas!
Velarde não ficou surpreso com o aparecimento daquela nova voz interior... não podia deixar de sorrir sadicamente enquanto se dirigia para o escritório do comandante, para receber o seu pedido de atenção.
Capítulo 7
Segundo Sonho
Quando chegou a casa, Jorge estava exausto, o desgaste físico juntou-se à fadiga mental - já eram muitas voltas no mesmo. Adormeceu.
O seu sono era tão pesado que nem foi capaz de tirar os sapatos, ficou na mesma posição por um longo tempo, mas ao entardecer o seu corpo começou a tremer. Dentro do seu sonho ele apareceu sentado à mesa, onde foi servido um grande banquete. Sorriu enquanto levantava uma taça de vinho; quando a pousou sobre os lábios, tomou um grande gole fechando os olhos, mas quando os abriu, encontrou a loira sentada à sua frente: "Eu disse que voltaria!"
O sono começou a perturbar o seu corpo, que de repente lutava contra a colcha e contra os travesseiros para dar espaço a si próprio, mas sem despertar. Na sua mente, a cena continuava, mas já noutra luta. A inquietação parou e agora, diante daquela mesa enorme, estava apenas uma garrafa de vinho e duas taças à sua frente. A misteriosa mulher loira já não estava mais à sua frente, mas à parte, numa atitude cordial, embora nunca passiva.
Pareceu que havia uma certa e confortável familiaridade entre os dois. Jorge bebeu da taça de vinho e olhou para o rosto da mulher que tinha como companheira. Era uma prática habitual, estar ao lado de uma rapariga na mesa, a festejar e a tomar uma bebida... havia uma certa semelhança, embora aquilo fosse um sonho e a postura recetiva de Jorge fosse bastante reverente, de maior respeito, afinal, era uma mulher adulta, mais velha do que ele, mas não velha. Na verdade, o seu rosto era o mesmo que se lembrava de ter em criança... uma blusa branca com gola frisada que servia de tela para um medalhão antigo pendurado ao pescoço, coberto com um casaco tipo blusão vermelho-púrpura escuro, muito parecido com o reflexo que o vinho emitia ao pousar o copo sobre a mesa; um cabelo volumoso, mas bem penteado emitia um brilho imenso, era um resplendor hipnótico. Jorge nunca tinha visto uma mulher tão descaradamente loira e, desta vez, devido à idade dela e da recorrência do assunto, descobriu naquela mulher uma sensualidade que não havia reparado anteriormente.
Aparentemente, a mulher percebeu como agora era vista por Jorge e não se sentiu desconfortável, pelo contrário, ficou lisonjeada. Serviu os dois copos de uma garrafa que parecia não ter fim e fez vibrar as paredes daquela sala de jantar onírica com uma voz poderosa, carregada de firmeza, presença e calma sugerida:
- "Boa noite, Jorge, como tens passado?" –
- Boa noite... bem, obrigado. - Jorge respondeu pontualmente, num tom seco.
- “Não te preocupes Jorge, bebe mais um pouco e diz-me: O que é feito da tua vida? Gostas de viver aqui, na capital? O que achaste do vinho? Esta variedade de uva é a minha favorita...”
- Sim. Já estou há muitos anos aqui em Chihuahua e não tenho planos de voltar a Ciudad Juárez. Porque é que vieste?
- “Ah! É uma pergunta interessante. Não estás para rodeios, hein? Bem, então, deixa-me ser brutalmente honesta contigo... Jorge, o que eu preciso de ti, é realmente pouco, no máximo é um favor... nada que aches estranho ou impossível, mas definitivamente que exige integridade. Eu, de certa forma, sou colecionadora... até nisso somos parecidos, Jorge” – disse a senhora com um rosto sorridente - “Olha, não me tinha percebido! Dei uma volta pela tua casa e que seleção interessante de livros tu tens! Aqueles instrumentos musicais antigos também são muito loucos, o meu favorito é sem dúvida o pequeno acordeão que tens na mesa, aquela que tem algo muito semelhante a uma mandala pintada à mão”.
O sonho tornou-se nebuloso, um tanto denso. Um véu de fumaça com um perfume de violetas estava presente por toda a sala onde eles estavam e, de um sopro inverso, de algo que poderia ser descrito como uma projeção rápida, a fumaça desapareceu completamente deixando para trás apenas o aroma e a revelação de que eles já não estavam mais num lugar desconhecido, à frente de uma mesa grande! Desta vez, apareceram na sala de estar da casa de Jorge, lugar que ele raramente usava. As suas poltronas eram confortáveis e a iluminação era ideal para uma boa leitura, mas ele preferia sempre ler e escrever na mesa da sala de jantar; era um hábito que mantinha desde criança, talvez porque a casa da sua mãe era pequena.
Naquela época, o seu sonho era confortável e a cena de família, no final, era a sala de estar da sua casa, pois era mobilada e arrumada, mesmo com um pouco de poeira nos móveis; sinal de que a empregada não vinha há pelo menos algumas semanas. Teria de investigar. - O que aconteceu? - Até se divertiu ao perceber que fazia tanto tempo quanto o tempo que ele próprio não visitava aquela parte da sua casa. Não era necessário. Preferia ir do corredor para o pequeno pátio interno da casa e entrar diretamente na sala de jantar do que atravessar a sala.
Pôs-se a pensar no momento em que se apercebeu que a mulher, intensamente loira, ainda estava ao seu lado a segurar num copo com a mão esquerda e a apoiar-se tranquilamente na cadeira; e em cima da mesa estava a garrafa de vinho, que não estava vazia, e o copo de Jorge a meio. Ele segurou-o para tomar mais um gole enquanto a dama continuava a sua conversa:
- Eu dizia que o meu favorito é aquele velho acordeão, lembra-me aqueles músicos que tocavam tangos na praça, muito perto da tua casa... bem, eras apenas uma criança!
- “Também é o meu preferido! Gosto que seja a primeira peça que se vê ao entrar naquele quarto, julgo que a sala é o lugar ideal para isso. Gosto igualmente de tangos, encontro nessa queixa e lamento um desabafo com o qual me identifico, são tónicos, com carácter; por vezes até violentos! Embora o som daquele acordeão seja bastante suave e não tão grave. Talvez tenha sido usado para interpretar tarantelas, por isso é que gostei tanto, creio que me lembra as minhas raízes italianas”.
- “Jorge, que prazer te ouvir tão decidido, tão confiante. As minhas visitas não costumam ser tão longas - nem tão bem recebidas, devo acrescentar - não estava mesmo à espera! Que felicidade! Não me lembro de ter passado do segundo copo e agora sinto que poderia acabar esta garrafa. Caramba! Jorge, és um sedutor!”
- “Não, não sei… hahaha, é que… embora desconheça a sua origem e pouco ou nada consiga perceber o seu interesse em mim, reconheço que a sua companhia é muito agradável para mim. É estranho, porque sei que não será a última vez que me visitará e que, apesar de ser incomum, estou satisfeito!”
A mulher soltou uma grande e longa gargalhada, colocou o copo em cima da mesa e afastou o cabelo para trás com as duas mãos.
- Cala-te Jorge! Formidável! Já nem sequer sabes quem eu sou, e nem assim paras! És encantador! A sério que não pensei que fosses tão divertido! Olha que, visto de fora, sou sincera: és muito comum! Vais todos os dias para o escritório com uma chávena de café como pequeno-almoço e um cigarro nas mãos, de fato e gravata, sapatos engraxados; não sei por que não usas um portefólio? Sais do trabalho e vais à cantina, fazes idiotices nos bares, seduzes pela direita e pela esquerda, não te comprometes...”
- “A Direita era interessante, mas a Esquerda acabou por ser uma experiência e tanto!” - Jorge atreveu-se a interromper, fazendo uma das suas piadas do costume para prejudicar a solenidade do evento.
A mulher soltou uma gargalhada alta, o brilho dos seus olhos ofuscou o seu cabelo, lágrimas de alegria rolaram deles, as quais ela não hesitou em secar com as mãos, já que não havia maquilhagem para estragar, nem toalhetes em cima da mesa.
Depois de recuperar o fôlego, ela parou. Ele esperou com prazer e relaxou à espera do que a mulher diria a seguir, já era uma situação quase familiar.
- “Jorge, Jorge... há muito tempo que não me saíam as lágrimas, muito mesmo. Embora desta vez não tenha sido de dor, mas de alegria. Outrora foi por um homem, uma história triste e infeliz que um dia te conto se o permitires. Tenho tanto, mas tanto desejo de falar contigo que não queria ir embora, mas já está na hora. Não te contei nada sobre mim e recebeste-me na tua casa como se eu pertencesse a ela; o vinho foi ideia tua, sabes? Tenho de ir, não queria, mas devo.
Muito em breve voltarás a ver-me, enquanto isso não acontece, Jorge, está na hora de acordar”.
Jorge acordou.

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